segunda-feira, 5 de abril de 2010

Páscoa com Sabor de Chocolate Amargo


Domingos, normalmente, são dias tediosos. E também um pouco deprimentes, com aquele clima insuportável de 'segunda-feira-está-chegando' que irrita qualquer membro do proletariado. Também, normalmente, domingos são dias onde ninguém faz nada fora do normal, apenas se descansa, faz algo mais caseiro, afinal de contas, amanhã, será outro dia (de inferno, na maioria das vezes). Porém, em algumas ocasiões especiais, existem reuniões, encontros, churrascos descontraídos (ou não), e existem também, os almoços de família.
Sim, aqueles almoços onde todo mundo se reúne, todo mundo sorri, se abraça, como se realmente mantivessem contato, sendo que a última vez que se viram e se falaram e se importaram uns com os outros, foi justamente no almoço de família anterior, que ocorreu meses atrás. Pois é, tanto carinho, afeto e dedicação ao próprio sangue.
Porém, em algumas famílias em especial, almoços de família são evitados, pois são famosos por eventos marcantes, que tornam o clima da reunião, que já não é tão leve assim, ainda mais pesado.
Tudo caminhava na normalidade. A páscoa seria comemorada, neste ano, na casa da avó, uma senhora que estava preste a chegar aos 80 anos, e que tinha mais vivacidade que seus 7 filhos juntos. Estatura baixa, pele surrada do sol que tomou por anos enquanto trabalhava na lavoura, poucos cabelos, totalmente desarrumados e pintados de castanho escuro, e com uma feição no rosto que escondia completamente sua personalidade: um rosto angelical, típica Dona Benta, mas na verdade, era geniosa, raivosa, vingativa.
Chegaram ele e sua tia na casa, já haviam pessoas lá. Gabriel, bom, já sabia como seria a recepção dos familiares, agora que todos na casa sabiam sobre sua decisão universitária, e orientação sexual. Numa família tradicional italiana, ele sabia que todos os olhares caíriam para ele, sua tão odiada franja comprida, e seu estilo visto aos olhos de todos como estranho e espalhafatoso, e agora, ex-universitário, e gay.
Chegando lá, ele e sua tia Alair, já estavam presentes dois tios, uma tia, três primos, dois deles com suas respectivas (insossas) esposas, uma prima com o marido e duas filhas, e claro, a amada, idolatrada (não salve, não salve) anfitriã.
E, quase como num deja vu perfeitamente estruturado, assim que ele cruzou o portão, todos os olhos caíram sobre ele. Por poucos segundos, um silêncio constrangedor, e olhares que percorriam desde seu tênis All Star xadrez até o último fio de seu cabelo organizadamente bagunçado e cobrindo grande parte de sua (protuberante) testa. Poucos segundos, pois então todos saíram de seus respectivos transes crítico-demoníacos, recolocaram suas máscaras de harmonia-de-reunião-(hipócrita)-de-família. Sorrisos para todos os lados, abraços, e desejos, mais desejos - feliz páscoa, feliz páscoa, espero que entrem muitos ovos na sua cesta - e aí por diante. Uma família unida, feliz, onde todos se amam. Um estado utópico tocante.
Gabriel, com sua cabeça a ponto de estourar por um ataque extremamente indesejado e estupidamente forte de sua migrânea, deita-se no sofá da sala, fecha a porta, e mesmo assim escuta a conversa (os berros, a disputa por atenção, todo aquele falatório sem sentido sobre alguma doença ou sobre a vida de alguém do passado) de seus parentes. E vejo este o momento propício para uma observação: Italianos deveriam vir com botão de volume. Falam alto mesmo quando estão sussurrando, é algo incrível. E extremamente irritante quando se tem a sensação de ter uma bateria de escola de samba tocando, privilegiadamente, só pra você, dentro do seu crânio.
Passados alguns minutos, chega sua mãe, sua irmã, e seu padrasto. Padrasto esse que por sinal está de boné. Gabriel se questiona sempre daonde ele tira aqueles bonés ridículos (Estilizados com nomes de lojas de materiais de construção, mercados, bancos, ou de algum ponto turístico extremamente irrelevante e sem graça país a fora), e também, daonde ele tira coragem para sair em público com aquilo. Padrasto esse que, também, está de aniversário, no dia da Páscoa. Está de anos em festa no dia em que as pessoas querem levar vários ovos. Agora, além de desejos de feliz páscoa, são vários e vários desejos de felicidades, muitos anos de vida, enfim. Momento clichê, totalmente previsível.
O Padrasto e a mãe vão em direção a cozinha, aonde a anfitriã prepara o almoço, que por sinal, parece estar sendo preparado para o triplo de pessoas que estão no local. Outra coisa incompreensível sobre italianos é o exagero nas comidas. Deve ser complicado contar quantas pessoas estão no lugar, e ter noção de que está em excesso. E ainda mais, sendo preparado por esta pessoa, o único pensamento que se pode ter é do clipe de Telephone, da Lady GaGa. Sabe, aquele momento da cozinha? Então. O medo existe, e quem tem orifício anal, tem medo, já diriam os antigos. A anfitriã então, interrompe o preparo do seu tão esperado banquete para cumprimentar seu genro e sua filha caçula, e então entrega um pacote para o genro. Um presente, tão amável sogra.
Mas claro, já era de se esperar que ela repetiria um ato que já aconteceu muitas e muitas vezes. Só não seria crível que sua audácia e capacidade de atuação teria aumentado drasticamente com o tempo. Alguns diriam que isso é a idade, que ela apenas está senil. Mas não, podem crer que não. Ela tem total consciência de seus atos, o que é extremamente triste.
Vilmar, o padrasto e genro aniversariante, entrega o pacote a sua esposa, para que ela abra o presente recebido de sua sogra favorita, e única (até aonde se tem conhecimento). Ciza, a mãe, e esposa do aniversariante. abre o pacote, e então tira uma camisa. Até aí, para um advogado, que usa camisas todos os dias, seria um presente extremamente útil, e digno de um agradecimento. Seria, se não fosse o detalhe de que a camisa era usada, estava amassada e com o colarinho manchado, a etiqueta totalmente lavada e esgaçada. Velha. Repassando algo que não tem mais utilidade, afinal de contas, o segundo marido da anfitriã fora dar um passeio de mãos dadas com Perséfone no mundo inferior.
Ciza olha com desdém para o presente, olhando bem para os dentes do cavalo dado, e então, dispara:
- Essa camisa é velha. Olha, está toda amassada! O colarinho todo manchado, a etiqueta mostra que isso aqui já foi lavado milhares de vezes. Que tipo de presente é esse?
- Claro que não Ciza, que absurdo você falar esse tipo de coisa! Eu sempre dou do bom e do melhor pra minha família!
- Ah, tá bem. Não é a primeira vez que a senhora faz isso, eu que não vou levar isso pra minha casa.
Dizendo isso, joga a camisa em cima da mesa da cozinha, e vira as costas. Nesse momento, foi como se a lua cheia passasse pelos olhos do lobisomem, pois a anfitriã ficou raivosa. Começou a bufar e resmungar, como se amaldiçoando todas as gerações da filha caçula. E claro, que sempre que o lobisomem aparece, o que ele procura? Uma vítima. E sempre tem um criatura tola que está passando perto do habitat da besta. Exatamente.
Camila, a filha mais velha da prima de Gabriel (com 8 anos de idade), presente no macabro recinto da besta, tem uma educação inexplicável. Ou melhor, a falta dela é inexplicável. Sua falta de limites é incrível, vive como se tudo fosse seu, e é seu agora, não existe espera ou respeito em seu mundo. E neste dia, em especial, ela agiu no lugar errado, na hora errado.
No centro da sala de jantar do recinto da besta, há uma mesa de madeira, de 10 lugares. Cadeiras estofadas, feitas da mesma madeira escura da mesa, com entalhes na parte superior do encosto. Sobre a mesa, uma toalha branca, estendida por toda sua extensão, e sobre esta, pratos, talheres e copos empilhados, esperando para serem distríbuidos a frente de cada um dos assentos, para depois servirem de recipiente da comida a ser servida pela anfitriã.
Nesse momento, Camila passa pelo recinto, mal sabendo que no cômodo ao lado, na cozinha, está residindo uma criatura que ela não gostaria de enfrentar: sua bisavó à beira de um ataque de nervos. Olhando então para aquelas louças organizadamente empilhadas sobre a mesa, sua maior vontade foi de colocar suas pequenas mãos juvenis e descontroladas sobre elas, e dispor da maneira que bem entendesse. Não que elas estivessem fora de ordem, pois já foi dito que estavam organizadas, mas por um simples detalhe: a disposição não tinha sido obra dela, e ela, no seu mundo particular, é quem dizia como algo fica ou não fica colocado em algum lugar. Que assim seja.
Ela estende a mão para tocar no primeiro prato, mas para seu azar e sorte das louças, a anfitriã passa justamente nesse momento pela porta que divide a cozinha e a sala de jantar. Vendo a pequena criatura esticando seu corpo para alcançar seus pertences, a "lobisanfitriã" que está espumando e amaldiçoando cada um dos fios de cabelo de sua filha caçula, coloca seus olhos vermelhos de fúria sobre a criança, e esbraveja:
- SUA CRIANÇA DESCONTROLADA, O QUE VOCÊ PENSA QUE VAI FAZER? ATÉ PARECE SUA AVÓ, TOTALMENTE SEM LIMITES ACHANDO QUE PODE PEGAR O QUE É DOS OUTROS ASSIM DE QUALQUER JEITO! NÃO MEXA NAS MINHAS LOUÇAS, VOCÊ VAI QUEBRÁ-LAS, SUA DESCUIDADA! SAIA JÁ DAÍ, AGORA!
Primeiro, Camila paraliza perante a besta em surto, então, vira as costas, e chorando descontroladamente, corre em direção a algum porto seguro. O primeiro encontrado, é sua avó, uma das filhas da anfitriã, Adelsa. Ela olha para avó, e chorando, conta todo o episódio, entre um soluço e outro. Adelsa fica séria, e chega então para sua filha, e conta o que aconteceu. Graciela, a mãe de Camila e filha de Adelsa, respondendo a seus instintos maternais pelo menos por uma vez, levanta-se e vai tirar satisfações com a anfitriã, sua avó.
- A SENHORA É LOUCA? GRITAR ASSIM COM A MINHA FILHA, FALAR MAL DA MINHA MÃE, SENDO QUE NENHUMA DAS DUAS FEZ NADA PRA VOCÊ?
- SUA FILHA ESTÁ PENSANDO O QUE? QUE MINHAS LOUÇAS SÃO BRINQUEDOS DELA PARA ELA ACHAR QUE VAI POR A MÃO? ELA IRIA QUEBRAR TUDO!
- ELA NÃO FEZ NADA, NÃO FEZ! A SENHORA É LOUCA, TOTALMENTE LOUCA!
Graciela, que é branca como giz, estava completamente vermelha, até a raiz dos seus cabelos. Olha para a mãe, chama as duas filhas, e anuncia que está indo embora. Não pretende ficar no mesmo lugar que a insana anfitriã, que desrespeitou sua filha. Reúne seus pertences, pega as filhas e sai pelo pequeno portão cinza, sem se despedir de ninguém.
Começam então os cochichos. É interessante que mesmo em lugares com poucas pessoas, as fofocas sempre acabam distorcidas. Já se dizia em agressão física, pratos quebrados, rostos estapeados. Só faltava o sangue e a morte pra se ter uma tragédia grega pascal. Mas, como era necessário manter o teatro vivo, afinal de contas "the show must go on", todos esqueceram em poucos segundos o acontecido. E todos voltaram a falar de seus problemas, e dinheiro (ou a falta dele), de como os filhos são e não são, ou seja, nunca muda, nunca vai mudar.
Depois de tanta conversa jogada fora (no sentido literal de jogar fora), era chegada a hora da utilização de suas bocas para outro fim: alimentar. A anfitriã dispôs todos os (exagerados e demasiados) pratos sobre a mesa, e chamou a família para o almoço.
Gabriel chegou a mesa e logo foi sentando-se ao lado de sua irmã de 6 anos, Luiza, que solicitou a companhia do irmão a mesa. Então, Rafael, um dos primos, 28 anos, franzino, com marcas de acne na face que não saíriam nunca dali, para auxiliarem eternamente na recordação dos furúnculos que possuía na adolescência, e muito reservado, só usando sua voz para fazer comentários desnecessários e dar idéias indesejáveis. O que não foi diferente desta vez.
- Vamos rezar um pai nosso antes de comer?
- Alguém deve estar brincando comigo que eu vou ter que levantar! - ironiza Gabriel, olhando com ânsia para o primo, que responde com um sorriso amarelo na sua face vale-das-cicatrizes.
- Claro que vai - responde animadamente Vilmar, com o seu tão patético boné do Marco das 3 Fronteiras sobre sua cabeça loira.
Gabriel, à contragosto, levanta da mesa e vai atrás de sua mãe, abraçando-a. Gabriel e a mãe se dispuseram estrategicamente perto do corredor que leva ao banheiro da casa, como que prevendo que alguma situação durante a oração os obrigaria a ir ao cômodo. Seria quase como uma disputa para ver quem chegaria primeiro, mas os dois estavam ali, a postos.
A anfitriã então iniciou a oração, sendo ela a única a fazê-la em voz alta, todos os outros ao redor da mesa apenas resmungando a oração que Jesus vos ensinou. Menos Gabriel, ele está em silêncio, apenas avaliando a situação, olhando por cima do cocuruto da mãe para todos os presentes, principalmente para a anfitriã, que parecia uma daquelas senhoras beatas figurantes de filmes que se passam no sertão, só faltando o véu na cabeça para parecer que tinha saído diretamente do elenco de apoio de algum filme de Guel Arraes. Chegando então quase ao final da oração, acontece o esperado por Gabriel e sua mãe. A situação que os faria disputar pelo banheiro. Não por alguma razão fisiológica, não. Por uma questão de educação. Não seria gentil rir da anfitriã enquanto ela comete um erro de português monstruoso durante o Padre Nosso:
- (...) Predoa nossas ofensa, assim como nóis preduemo quem nos ofende (...)
Gabriel solta sua mãe, e antes que ela mova um dos seus pés, ele dispara em direção ao banheiro, batendo a porta com força demais para passar despercebido pelos outros. Chegando lá, ele respira fundo, segurando-se para não rir, temendo que alguém escute. Lava o rosto, e volta a mesa. Estão todos já sentados, e quando ele volta, todos os olhares voltam a ele, assim como quando chegou. Além de ser um gay, alternativo demais para se enquadrar no berço da família, ex-universitário, ele acrescenta agora o fato de não respeitar a anfitriã. Para o inferno com respeito. Ele senta-se à mesa, começa a preparar seu prato, e acrescente uma nota mental para ser atribuída a suas aspirações de virada de ano:
Em 2011, eu não preciso de outra dose dessas. Eu sobrevivo a uma Páscoa em casa, sem esse teatro. Obrigado.

3 comentários:

  1. heey muuito obrigada pela indicação, logo logo coloco no blog espero.
    e
    nossa, e eu prefiro nem comentar dos meus domingos comemorativos em familia, e o pior nem precisa ser domingo pra eu nao querer pensar nessas reuniões.

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  2. adoreei!
    o jeito como vc dispoe o humor criticando os membros da casa ou suas atitudes,de forma ironizada ou sarcastica.é muito inteligente!
    adorei de verdade (: parabéns!
    e tenho que te dizer que,em casa de italiano,sempre tem confusao,falatorio e excesso de comida mesmo! hehehe

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  3. Adoro seu ar irônico,conheci de perto isso huaauaua,vc como sempre tão verdadeiro q me impressiona a cada dia q passa,é por isso q gosto tanto de vc
    e ah,adorei a sua bisa,kero ela pra mim shushushushs-N

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