sexta-feira, 25 de junho de 2010

The Kid is Not My Son, mas ainda assim...

Era a primeira semana de Rodrigo em seu emprego no Cartório de Registro Civil. Jovem, de estatura mediana, cabelos castanhos, pele clara, que havia sido escolhido para atender no balcão e pegar os dados para registro não somente por ser muito educado e muito simpático, mas também porque nenhum dos antigos agüentava mais os absurdos que ocorriam no ambiente. Obviamente, isso não foi dito ao novato, que aceitou prontamente a posição que o haviam colocado. Rodrigo, na verdade, nunca pensou em trabalhar antes, apenas ocupando seu tempo a noite com a faculdade, porém, cansado das discussões diárias com a mãe, que o chamava de desocupado e desinteressado, decidiu por procurar um emprego, e quando descobriu sobre a vaga, decidiu tentar a sorte. Pois bem, ele a conseguiu, a mãe ficou super satisfeita com a novidade. Ele só esperava que tudo corresse bem.
Nos primeiros dias, nada de anormal. Recolheu dados para certidões de nascimento de várias meninas: Ana, Laura, Luiza, Giovana, Camila. Muitas meninas, mas nada fora do comum, e mesmo sendo bastante otimista e alegre, ele sabia que mais dia, menos dia, aparecia alguma situação desconfortável, afinal de contas, quando se lida com pessoas, vários tipos de situação podem ser esperadas.
Era uma quarta-feira, e tudo começou normal. Levantou, tomou um banho, escovou os dentes, comeu uma torrada com café e voltou a higienizar a boca, e saiu para o trabalho. Por morar a três quadras do cartório, decidiu que iria trabalhar a pé; ajudaria o meio ambiente, não teria que se irritar com o trânsito, e poderia observar as pessoas que passavam pela rua.
Chegou ao trabalho, cumprimentou a todos que trabalhavam com ele. Além dele, mais duas pessoas ficavam no balcão: Jorge, um homem de 45 anos, muito simpático e conversador, de estatura mediana, uma proeminente barriga, pele clara e flácida, mas o que mais chamava a atenção eram seus cabelos. Ele é o que pode se chamar de "careca cabeludo", em vista que todo o topo de sua cabeça era calvo, porém ele tinha cabelo na nuca, cabelo este que chegava até metade das costas e vivia amarrado. Também junto a eles trabalhava Soliane, que, apesar dos 28 anos, aparentava mais, devido a seu desleixo e seu mau humor. Respondia aos cumprimentos dos colegas com grunhidos, e não falava mais que o necessário, e somente o profissional.
Rodrigo se colocou em seu posto de trabalho e esperou que os atendimentos começassem. Logo chegaram pessoas, algumas chorosas, com certidões de óbito a serem retiradas, outros com pequenas crianças no colo, para expedirem certidões de nascimento. Todos com suas senhas na mão esperando a serem chamados. Rodrigo então apertou o botão e vieram ao seu guichê um casal simples, com uma criança no colo, e mais duas crianças pequenas a tiracolo. Ele, o pai, era alto, de pele castigada pelo sol, e corpo forte, visivelmente proveniente de trabalho braçal. Ela, a mãe, era mais baixa, tinha cabelos muito compridos, e tinha um rosto que passava um semblante cansado, porém feliz. Sentaram-se a frente de Rodrigo, a mãe segurava o bebê, e as duas crianças, duas garotas idênticas, de no máximo 4 anos, ficaram ao lado do pai, de mãos dadas e as mãos livres apoiadas na coxa esquerda do pai.
- Bom dia, sou Rodrigo, em que posso ajudá-los?
- Bom dia seu moço - respondeu o pai, estendendo a mão ao jovem - Eu Zé Carlo, e essa é minha esposa, Zulmira - com a menção de seu nome, a mulher tirou os olhos de seu filho e olhou ao rapaz, sorrindo - Nós veio aqui pra mó de fazê a certidão do nosso pequeno, porque o moço sabe né? Se nós deixa de fazê isso logo, nós tem que pagá multa, e nós não tem dinheiro pra ficá gastano né seu moço?
- Sim, eu compreendo meu senhor. E que belo menino vocês tiveram! Tão bonito, tão forte!
- Ah, brigado seu moço! Ele é forte mesmo, o senhor sabe? Ele nasceu até imaturo de 7 mês e os doutô tudo ficaram assustado de como ele ficou bom ligero!
- Nossa, verdade que o menino é prematuro? - Rodrigo respondeu, corrigindo sutilmente o erro cometido pelo pai - Se o senhor não me contasse, eu jamais imaginaria!
- Pois não é? Esse aí carrega sangue de macho, que nem o pai - disse Zé Carlo, sorridente, batendo no peito.
Rodrigo, para não estender ainda mais a conversa e para não atrasar seus atendimentos, decidiu ir direto ao assunto:
- Mas então senhores, vocês podem me passar a ficha médica para as informações, para que eu possa registrar o filho dos senhores?
- Claro seu moço, claro claro. Tá contigo né amor?
- Tá sim Zé Carlo, mas tá na bolsa aqui ó, e não tem como eu pegá com esse menino no colo.
- Ullyene, pega ali na bolsa de sua mãe, ande - ordenou Zé Carlo, cutucando a menininha que estava mais perto dele.
Ullyene foi até o lado da mãe, e abriu a bolsa, vasculhando, em busca do documento.
- É esse aí fia, do lado das fralda de pano. Esse com carimbo verde em cima - indicava a mãe, olhando para dentro da bolsa - Isso fia, isso. Entrega pro rapaz ali, entrega.
Ullyene esticou seu bracinho até onde pôde, e Rodrigo então pegou o papel. Quando abriu o papel, notou, porém, que algo faltava.
- Senhor, me desculpe, mas tem algo de errado neste documento. Está tudo certo em relação a data, horário, local, nome dos pais, porém, normalmente o primeiro nome do filho já vem escrito. Aqui, porém, existe apenas um número.
- Então, moço, é aí que eu precisava mesmo conversá com alguém assim, mais entendido das coisa né? Sorte que eu peguei um rapaz assim, que nem o senhor, de pouca idade, que entende das coisa do mundo melhor que as enfermeira véia e coroca daquele hospital.
- Por que senhor? O que acontece?
- Sabe, esse menino é nosso sétimo fio, e o último, mó de que minha esposa aqui teve uma tal de cosplicação no ovário e aí depois que ela pariu, eles tiveram que tirar antes que desse algum outro pobrema. Então, nós decidimo que o nome dele ia ser especial, que ia ser algo que marcou a nossa vida junto. Nossos 6 fio tem tudo nome começando com U: Uoshito, Uesley, Uiliam, Ulbert, e as gêmea, Ullyana e Ullyene, que tão aqui com nós. Mas esse, nós decidimo que nós ia homenagear alguém. Então, nós lembrado de quando nós conheceu um o outro, e que a gente tava numa festa de uma amiga nossa, e que a gente se viu, e que tava tocano uma música em inglês muito da bonita, e que nós tava dançando, se vimo, e foi amor de primeira oiada. E ainda, esse ano que passô o cantor dessa música veio a falece, então nós decidimo que ia ser duas coisa boa: homenageá ele e lembrá da nossa história.
Rodrigo, interrompendo o senhor, resolveu novamente adiantar o assunto, ficando preocupado que algum superior seu chegasse e notasse a demora no atendimento:
- Sim, eu entendo senhor, mas como vai ser o nome do garoto então?
- Então, nós decidimo que ele vai ter o sobrenome de mãe e de pai, que nem os outro 6, né? Ferreira de Souza. Eu vô escreve o nome do menino pro senhor, pra mó de o senhor não escrever errado que nem as enfermeira tava escrevendo. O senhor pode me alcançar um papel e uma caneta?
Rodrigo prontamente entregou um rascunho de seu bloco e uma caneta para que o homem escrevesse o nome do filho, já ficando assustando com o que estava por vir. Zé Carlo lhe entregou o papel, e em garranchos, estava escrito o nome do filho: "Maicoujétso Ferreira de Souza". Rodrigo teve que segurar o riso, então dirigiu a palavra ao homem.
- Meu senhor, você quis dizer Michael Jackson?
- Como filho? Escreve aí pra mó de eu vê?
Rodrigo escreveu o nome corretamente, e então o homem fechou o rosto, parecendo levemente irritado.
- Óia moço, as enfermera escreveram a mesma coisa aí, mas escuta, nissaí eu to leno Michael Jackson - o homem leu exatamente como se escreve em português, sem a fonética inglesa correta - e o nome do cantor, que também vai ser o nome de meu bebê, é Maicoujétso! O senhô não conhece não, o cantor? Que canta aquela música assim: "Billidin, izómalaan, chijãzagou rugains areuan"? Não sabe não?
- Senhor, claro que conheço, mas o nome correto não é como o senhor escreveu. Além do mais, faz algum tempo que a legislação nos proíbe registrar nomes que sejam assim, tão...
- Tão o que rapaz? Fala, desembucha! - interrompeu Zé Carlo, já parecendo levemente irritado.
- Assim, senhor, que sejam estrangeirismo escritos de forma tão diferente e que possam levar a criança a algum tipo de constrangimento. Nós podemos até escrever de outra forma, veja...
Rodrigo tentou melhorar a situação, e escreveu em um papel Maicon Jeckson, que ainda errado, lhe parecia um tanto melhor que Maicoujétso. Zé Carlo olhou para o papel, e, vermelho, amassou o papel em sua mão.
- Moço, eu não quero que seja Michael Jackson, Maicon Jeckson, porque não tem nenhum N no final de Maico... O nome do meu filho é Maicoujétso Ferreira de Souza, e eu acho bom o senhor fazê essas papelada aí senão a coisa fica FEIA! - a última palavra, o homem gritou, e bateu no balcão, fazendo com que o menino que era a causa da discussão começasse a chorar.
- Viu seu moço? O que o senhor tá fazendo? Tá fazendo meu filho chorar! Vamo seu moço, acelera isso daí senão a coisa fica feia!
Rodrigo não sabia o que fazer. Naquele momento, Jorge não estava no balcão, devia estar no banheiro, ou fumando, ou tomando café, e Soliane parecia estar em outro lugar, sem nem dar atenção ao ocorrido, atendendo outro casal, com uma bela menina. "Eles devem estar batizando uma Laura, enquanto esses doidos querem um Maicoujétso" pensou, pesaroso, o rapaz.
- Senhor, me perdoe, mas eu não posso. Não existe uma segunda opção?
- NEM SEGUNDA, NEM TERCEIRA, NEM NADA! É MAICOUJÉTSO! - O homem já estava de pé, apoiado no balcão, olhando dentro dos olhos do rapaz.
- Mas senhor...
- OLHA AQUI MOÇO!
Neste momento, para sorte de Rodrigo, Jorge estava retornando ao seu lugar, e viu o homem quase agredindo seu novo colega de trabalho. Aproximou-se, e dirigiu a palavra ao homem exaltado:
- Meu senhor, meu senhor, acalme-se... o que acontece?
- Olha moço, eu to aqui, querendo registrá meu filho, seguir a lei, e esse guri aí não tá quereno ajudar, olha, eu não saio daqui sem esse documento, e eu não quero nem saber....
Percebendo o espanto e o desespero por não saber o que fazer do seu jovem colega, Jorge pediu para que a família o acompanhasse a um local mais reservado, apontando a direção para eles, e piscando para Rodrigo, deixando-o mais tranquilo e agradecendo por não trabalhar somente com Soliane, pois se dependesse dela, ele estaria sendo estrangulado neste momento. Exatamente quando pensava isso, ela chamou a atenção dele.
- Hey, psiu...
- Hmm - grunhiu ele em resposta, assim como ela fazia.
Ela, com uma expressão cínica e com tom igualmente cínico na voz, lhe disse:
- Fique feliz por ele não ter com ele uma faca ou algo parecido, uma vez um cara tentou cortar minha garganta. Mas relaxa, um dia você aprende a relevar as regras, a relevar tudo isso aí. O Jorge é todo simpático porque ele é casado com a chefe aqui, faz isso pra ficar perto dela só, mas na maioria, todo mundo acaba assim, que nem eu. Você chega lá.
Ele apenas balançou a cabeça, e disse que iria ao banheiro. Chegando lá, se olhou no espelho e imaginou quanto tempo ele levaria pra se tornar tão insensível quanto Soliane ou os outros, como ela diz que a maioria é. Ainda olhando para os olhos de reflexo, disse para si mesmo:
- É mãe, eu prefiro continuar a discutir com você e você me chamando de desocupado, do que ter que ser quase assassinado por pais de Maicoujétsos, Leididais, ou qualquer outra coisa que possa aparecer por aqui...

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Uníssono

Apenas lhe concedo a honra desta dança se você se desprender de todo o seu orgulho. Não darei minha mão a um homem que não consegue parecer alguém comum, alguém como todos os outros. Não lhe permitirei encostar em meu vestido e me despir, se nem nu você consegue perceber que o seu corpo é como todos os outros. Não deixarei você invadir minha vida se você não consegue nem abrir espaço para que alguém saiba realmente quem você é.
Se você não sabe descer de seu pedestal, então eu me permito a lhe convidar a dançar sozinho ao som desta bela melodia que você escreveu para você mesmo.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Passos Incertos; ou O Primeiro Ato

Acorde. Acorde de tudo que você criou para viver melhor.
Saia do seu mundo e venha para o mundo que todos dividimos, para todo este circo eternamente armado que chamamos de casa.
Coloque sua melhor máscara, aquela com o maior sorriso, aquela que todos vão aceitar facilmente, e sua roupa mais bela e mais cara.
Dê-me sua mão, junte-se a todos nós, e venha dançar conosco a valsa dos quase-mortos.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Portais

Eu que sempre quis ter facilidade para estar em ambos os lados, agora temo.
Seu toque foi como uma chave, que, após ser moldada durante tanto tempo, finalmente abriu as portas, quebrou os bloqueios que me faziam estar em contato com tudo que eu sempre desejei ter por perto.
Sinto seus olhos, vejo seus olhos encarando os meus, sinto seu toque, sim, o toque, toque que acaricia, que puxa, que machuca, que arranha, que dilacera. Tenho certeza que vou guardar para sempre a lembrança dos primeiros cortes, e dos primeiros gritos. Gritos no silêncio, que só eu consigo ouvir.
E foi depois de você. O que mais você irá trazer? O que mais você tornará real, em tudo que eu sonho e anseio? O que mais você está destinado a fazer por mim?
Eu não sei, apenas espero. Apenas anseio, e também temo.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Rios de Sangue; Ou os sinais escondidos atrás dos olhos

Era como ver tudo por cima. Nâo como se estivesse sobrevoando, mas como se estivesse de joelhos sobre um teto de vidro, sobre um grande aquário.
Era um lugar qualquer, uma praia, um deserto, um campo, impossível de definir o que aquele solo negro e destruído representava. Só o que se podia saber era que se via ali um lugar em ruínas.
Então, surgiram as pessoas. Vindo pela direita daquele cenário apocalíptico, estavam pessoas aparentemente comuns, maltrapilhos, sujos, acabados, e todos com uma expressão comum no rosto: cansaço e desespero. Não andavam, se arrastavam, alguns caíam e se levantavam, sozinhos. Ninguém se falava, ninguém se ajudava. Apenas seguiam em frente. Seguem em frente, até que param, todos ao mesmo tempo, olhando fixamente para o lado oposto.
Do outro lado, vinham pessoas todas vestidas de preto, com armas apontadas para a frente. Caminhavam eretos, e seus passos eram ritmados, fortes, parecendo ensaiados, e seguiam em frente, indo contra a população de desolados que estava ali, estática.
A menos de 2 metros do grupo, os homens de preto começaram a atirar. Um assassinato em massa, tiros à queimarroupa, sem escrúpulos, sem medo.
E ali em cima, apenas como espectador, ele não sabia quem eram aquelas pessoas, mas de uma coisa ele tinha certeza, ele sentia em cada pedaço de seu corpo: ali havia uma destruição em massa de vidas inocentes. Ele gritava, batia no vidro embaixo de seu corpo, e tudo que podia fazer era ver as balas sendo disparadas e o sangue daqueles pobres seres sendo derramado, e quando sua garganta ficou tão seca de tanto gritar, ele acordou, mais uma vez.
Já não era o primeiro pesadelo, tantos outros haviam ido e vindo nesses dias em que ele não mais dormia a noite, apenas cochilava para ver situações ruins, estranhas, e que o faziam novamente acordar. Não havia sentido em nada daquilo que ele via a tantos dias, em tantos sonhos. Mas de uma coisa ele tinha certeza, algo estranho estava por vir, e uma certeza, tão forte quanto a inocência daqueles maltrapilhos, lhe dizia que não era algo bom.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Rascunhos

Não existem memórias que eu ame mais, do que aquelas que eu criei para ofuscarem as que eu mais detesto.
Se tudo fosse tão simples como escrever uma história, eu simplesmente reescreveria várias partes dela. Não jogaria tudo fora, não. Existem experiências que eu jamais gostaria de esquecer. Quem sabe, modificar uns pontos aqui, outros ali.
Reescrever o que é real, enfatizar o que não é real. Misturar vontades, criações e a dura realidade em um equilíbrio perfeito que me permitam, então, fechar os olhos e dormir em paz.