domingo, 25 de dezembro de 2011

Camuflagem

Haviam luzes incomodando os olhos. Mesmo fechados, atravessavam e invadiam sua retina com uma força brutal. Gritava, em vão, para acabarem com toda a imensidão clara.
Não havia voz.
Haviam sons ensurdecedores penetrando em seus tímpanos. Sentia-se à beira da surdez e suas súplicas não se faziam presentes em meio a ondas de som tão fortes.
Não havia voz.
Um corpo nu deitado na areia invadido por cada grão. Cada poro preenchido por um pedaço de terra, impossibilitando de transpirar. Sentia-se inchado, todos os líquidos retidos trancados por areia. Seus pelos cheios de areia, sua pélvis suja de areia, seus cabelos eram areia, seus dentes mastigavam.
Uma chuva fina caía sobre a pessoa imóvel deitada no chão. Uma massa disforme terrahomemareiamarchuva se criava e se confundia com o ambiente e sumia embaixo de luzes e sons e pegadas e pessoas e desaparecia.
As ondas do mar traziam pedaços e pedaços de areia e terra e sujeira para cima do corpo estendido no chão.
Não havia voz.

domingo, 2 de outubro de 2011

Calabouço

Refletido em luz, os olhos opacos envelheciam os arredores. Carregadas e engatilhadas, as armas na garganta vomitavam projéteis palavras contra as paredes, pintando com sangue seco na carne da casa inabitada. Revirando papeis entre as gavetas do quarto mofado, reencontrava os recados que costumavam ficar grudados com fita nas paredes para não esquecer de respirar fundo todos os dias pela manhã.
Há muito tempo não se viam as manhãs. Os olhos secos, abandonados em um rosto inexpressivo, esqueciam-se, um pouco mais a cada dia, do efeito da luz incidindo sobre sua pupila. As cortinas de ferro aprisionavam a luz no resto do mundo e proibiam-na de se libertar para dentro do cômodo em ruínas.
Pendurados no teto, vermes e insetos enrolados em teias de aranha esperando para serem devorados. Um móbile natural e mórbido decorando a solidão daquele espaço.
Gritando em silêncio para não espantar o silêncio e preencher o vazio, sentia aos poucos o pó que corria pelo seu rosto, vindo de seus globos oculares. Secos, escorrendo até o chão e se misturando com as cinzas que cobriam o assoalho.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Necrofagia

Carrego comigo as pétalas das rosas. Depositadas, secas, as flores sobre o altar mofado. Os olhos vazios fitando sombriamente os galhos cinzas. Os rostos cinzas afundando em pele os globos secos. Uma realidade contrária, um órgão pulsante vagando alto sobre as cabeças de espectros. Sobre o altar, um órgão mofado, um conjunto de carbono devorado lentamente pelos micróbios que se tornam, na mesma velocidade, parte daquele bioma. Micróbios mais famintos em olhos secos. Vidrados fitando as flores sem cor. Uma paisagem funesta.
Parcialmente ofsucado pelo ar cinza que sai dos poros das paredes, faço parte do ambiente como um banco de madeira. Mofado. Mas com olhos que piscam, um órgão pulsante. Perscruto os cantos com os olhos vivos encontrando uma porta para entrar em algum lugar. Aqui, estou fora. Exposto. Uma presa em potencial, que carrega consigo as pétalas roubadas das flores não merecidas, desperdiçadas sobre um conjunto de carbono mofado que não mais pulsa. Os olhos secos sem lágrimas choram sangue choram urina choram vida e secam os rostos e a pele e se tornam cinza. Sentindo os fluídos que caminham velozes sob minha derme fina, reajo ao vazio, levando o cheiro do mofo em minhas vestes, o som do silêncio e do gotejar de líquidos, restos de pó em minhas calças negras. E levando comigo as pétalas das rosas.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Monocromo

Em sua mais pura essência, as pétalas caídas no asfalto pintam o negro com suas múltiplas cores. Passos fortes sobre o perfume inundavam seus sapatos com as tonalidades pestilentas de uma morte colorida. Os restos de outono espalhados pelo caminho traziam recordações do verão que ficara para trás. O frio que batia em sua porta o fazia lembrar do calor que aqueceu seus dias há alguns meses atrás.
Seguiu sua rotina, o dia seguiu seu curso. Em movimentos involuntários, suas pernas, quase que mecânicas, seguiam a mesma trilha para chegar ao mesmo lugar, onde viveria o cotidiano planejado. Nunca cansava de estar vivendo em círculos. A segurança da continuidade o protegia de tal maneira que não sentia a necessidade de pensar em seus atos. Tudo estava planejado. Um alicerce forte, uma estrutura milimetricamente arquitetada, um topo imponente. Uma construção fria.
Inabalável, seus anos passavam sem a percepção de mudanças. Os retratos urbanos, extremamente e eternamente mutáveis, não alteravam seu semblante comum. As cores que pintavam o mundo não tingiam sua face cinza.
Imperceptível, seguia duro e inexpressivo em direção a mais um dia. Indiferente, não percebia as horas correndo com suas pernas longas em seus corredores de concreto. Dentro de suas paredes, tudo permanece insignificantemente igual.
Permanecia impassível aos movimentos das folhas esvoaçando e tomando altura com o bater de asas das andorinhas. As expressões naturais não o motivavam a expressar emoção. A dureza optativa refletia em suas retinas imagens fixas e monocromáticas de tudo que há ao seu redor.
Em um verão que antecedeu o outono, o calor do seu corpo esfriou ao entrar em contato com sua pele seca. Pela janela da alma, tinha-se a visão de um jardim de inverno, com muitos galhos secos e um solo de areia. Alimentando lembranças de todas as estações como um moinho que gira em seu próprio eixo. Um moleiro produzindo diariamente seu sustento, um corpo inerte revivendo continuamente sua estabilidade. Um corpo que cai, um desperdício de carbono, uma presença ausente.

sábado, 13 de agosto de 2011

Biopsia

Carregava na mão uma pequena caixa, levando nela todos os seus restos de outros tempos que encontrou espalhados pelo chão. Não havia maneira de encaixá-los, como em um quebra-cabeça orgânico para reconstruir um corpo que não era seu. Nem nunca foi.
Abandonando a estética, descontruiu-se. Observava em si próprio os movimentos involuntários, as tremedeiras incontroláveis, o movimento dos cílios ao piscar os olhos. A sinapse.
Descontruindo estereótipos, aceitou a cabeça nua, os olhos vazios, as pernas disformes. A psique inconstante.
Caminhava com passos curtos e rápidos, observando o caminho a sua frente com a única preocupação de manter o foco no destino que pretendia alcançar, desconhecido. Segurando fortemente a alça que unia sua mão ao vasilhame que transportava os pedaços convencionais, sentia os dedos machucados pela madeira, misturando ferpas e sangue.
Carregava em sua mão uma pequena caixa, com resquícios dos recortes do que deveria ter sido para ser. Alguém. Ignorando regras, desregrou a existência para se reencontrar.
Em ignorância, acreditou que, como um carro, uma máquina, ao desmontar-se, ao toque visceral de si mesmo, encontraria a essência. De tão preocupado em se destruir, não construiu.
Carregava em sua mão uma pequena caixa. Retalhos destruídos, com odor acre. O corpo que necrosa, a estrutura que cai.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Versos Marcados

Eles tocavam apenas uma música.
Justamente, aquela música.
A única música que não queríamos escutar.
A música que tocou faz algum tempo.
Poderia ser qualquer outra, mas tinha que ser aquela.
A única canção que eu não queria escutar.
Aquela música que ele não podia ouvir.
Os versos que tocaram em um dia que ficou para trás.
Um dia que poderia ter sido como qualquer outro, mas não.
Foi um dia diferente.
E naquele dia, tocou essa música.
Aqueles antigos refrões ecoando em nossa memória como parte importante de tudo que houve.
Naquele dia.
Não um dia comum, não.
Um dia diferente de todos os outros.
Onde tocava uma canção.
A canção que tocava no dia em que nós.

sábado, 30 de julho de 2011

Réplica

Recolhi as folhas espalhadas pelo chão do quarto, e tentei, de alguma maneira, reconstruir o livro de recordações.
Encontrar uma ordem plausível para tantos poemas, canções, desenhos, rabiscos, rascunhos.
Reconstruir no caderno de lembranças, no diário desorganizado, a memória que a cada dia vai ficando mais frágil.
Talvez, assim, conseguir lembrar do dia que eu fui embora de mim, e deixei-me prender no cômodo que você incendiou.

domingo, 24 de julho de 2011

Em Retalhos

Era quase noite. Conversávamos sobre corpos. Os mais curvilíneos, os mais retos, os mais belos. Viamos o tempo passar quase como se estivesse parado. A cada vez que olhava ao relógio parecia que estava retrocedendo ao invés de seguir em frente, tamanha era a lentidão a das horas.
Passeamos por todos os assuntos, de artes a política, de futebol a telenovelas, e agora, quando não havia mais como fugir. Falavamos sobre os corpos.
Os corpos deles, os corpos delas. Os corpos mais quentes, os mais frios. Os mais viris, os mais mirrados. Os corpos que eram melhores que o meu, melhores que o dele.
E cada corpo mencionado, retratado, comentado, fazia com que uma parte do meu corpo e do corpo dele fosse arrancado, diminuído. Em cada corpo que tocamos em segredo, deixamos um pedaço nosso que não voltará mais.
Depois de muito adiar o fim, e de aumentar em exagero as feridas no vazio, saímos. Fui embora, com o que sobrava dos meus pés. Ele ficou, com as mãos sobre a mesa, tateando no escuro, procurando a chave do carro.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Um dia.

A cortina mofada me fazia lembrar de que ontem eu te disse pra fechar os olhos.
Ontem?

Fazia tempo que eu já não sabia qual era o som dos seus lábios secos ao se abrir pra dizer.
Nada.

E ontem, ou um pouco antes do mês passado, eu senti seus cílios se moverem lentamente e piscar seus belos olhos escarlates.
A mão fria encostava em minha pele e me dizia que eu podia deixar a luz entrar só um pouco, só um pouco, naquele quarto escuro e sem vida.
Os lençóis espalhados pelo chão nos lembravam que há muito tempo não arrumávamos a bagunça que fizemos uns dias antes, naqueles dias que ainda nos lembrávamos.

Nos lembrávamos dos bons tempos, da grama sob nossos pés e o orvalho sobre nossas cabeças.

Hoje, ou algo como um dia qualquer, tua pele seca, teus olhos vermelhos, as cortinas mofadas, e o silêncio triunfa.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Não mais.

Aos prantos.

Deitado em leito desconhecido.

Terreno plano, noite longa.

Caminho curto.

Risos intermináveis atravessando paredes.

Paredes pessoas ecoando em minha mente toca-fitas.

Canto as canções mais bonitas pra tentar parar de rir.

E antes que o sono vá embora, e ela acorde.

Eu acorde.

E ela implore, aos prantos.

Pra que eu vá embora desse quarto.

Atravesse a porta trancada.

Deixe-a só, sobre os lençois.

Que eu não reconheço.

sábado, 11 de junho de 2011

Nublado

Só outro dia.
Naquele outro dia, eu recolhi as roupas do varal, trouxe pra dentro de casa. O dia estava meio nublado, o lençol já estava seco, eu cansei de dormir no chão. Um pano pra limpar as costas, um tapete pra forrar o colchão. Sentado na poltrona virada para a parede, eu olhei pela janela e vi que o sol estava escondido por trás daquelas mesmas nuvens no outro céu de outrora. Se chovesse, eu teria que fazer tudo de novo. E eu recolhi as roupas do varal.
Sempre soube que outro dia eu faria tudo de novo pra encontrar algo que eu não sei como perdi. Se soubesse que seria só em outro dia eu teria evitado desde o começo pra que esse dia fosse mais um dia, e não outro dia. Mais um dia seria, e eu levantaria da cama e o lençol estaria limpo, porque ontem eu não teria que ter levado pra área de serviço e esfregado a noite toda. Água limpa que cai, água suja que escorre, mãos quase congeladas, pois o frio está de matar. Matar no frio é sempre mais dolorido.
Era outro dia, depois do dia de ontem, que deveria ter sido mais um dia, se não tivesse sido outro também. Todos os dias seriam outros, depois que o lençol ficou sujo. Sujei o lençol porque foi necessário, claro que foi. Dormir no chão também, o colchão estava secando, eu sujei também o colchão e tinha muita espuma dele pelo chão.
O colchão está na cama, virado, secando, e eu dormi no chão, esperando o outro dia mais um dia outro dia começar pra recolher o lençol e por na cama. Lençol sem manchas, que eu esfreguei a noite toda até sairem todas as manchas que eu sujei você sujou nós dois sujamos mas agora, você dorme lá fora, e eu durmo sozinho.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Cafuné

Sobre a mesa, uma folha em branco. Caneta em mãos, ideias na cabeça, coragem no congelador.
Uma carta, um poema, uma prosa, poesia. Expressar sentimentos, tão em vão quanto pedir justiça em um quarto fechado.
Sobre o tempo que passou, apenas memórias. Rememorar, escrever uma biografia, autópsia. Uma vida que foi, que não volta. Tempo não volta, apenas segue. Relembrar não é viver, relembrar é inútil. Reconstruir, impossível. Continuar, necessário.
Sobre os ombros, um peso. Peso imposto, peso fardo, peso autoflagelo. Não há cruz, não há pesar. Há autopiedade. Atenção por meio de sofrimento, criatura digna de desprezo. Conquistas por meio da tristeza, vitória por caminhos de lágrima e sangue. Vitória que não venceu nada, nem ninguém. Nem a si mesmo.
Uma carta sem destino. Aonde quer quer chegue, quem quer que recolha do chão, a quem der alguns segundos de atenção. Uma doação, um pedido, um afago, uma mão. Não por merecimento, mas por pena.
Autodestruição. Comece por você.

domingo, 5 de junho de 2011

Era mas não é.

Restos, ao alcance das mãos. Ficou pra trás abandonado largado. Inteiro sem manchas nem podres mas abandonado. Apalpa leva deixa não deixa não leva traz. Alimenta alma corpo alimenta boca mastiga forte. Arrasta contorce envenena veneno vômito gangrena. Ria chora sofre comemora ama demora. Perante os olhos por trás dos olhos por dentro por fora revolta revive rememora mora morra morre recomeça.
Órgão pulsante, pura ilusão. Não bomba amor não bomba sangue fluído e só. Arrancado tirado estraçalhado inteiro jogado. Corpo não há, apenas a bomba vital o órgão no chão o sangue do mundo a pulsar e esperar. Nas mãos, restos que pulsam, que tremem, que sugam expulsam sugam expulsam. No alcance do rosto, mancha face enche a boca preenche os vazios traz de volta tudo que não sou. Mas mato a fome.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Rendição

Se minha palavra é pouca
Cala minha boca
Boca
Boca
Pouca boca
Boca-a-boca
Respiração rouca
Pressão louca
Silêncio na outra
Sufoca garganta
Palavra que arranca
Socorro
Suspiro
Sussuro
Silêncio