sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Monocromo

Em sua mais pura essência, as pétalas caídas no asfalto pintam o negro com suas múltiplas cores. Passos fortes sobre o perfume inundavam seus sapatos com as tonalidades pestilentas de uma morte colorida. Os restos de outono espalhados pelo caminho traziam recordações do verão que ficara para trás. O frio que batia em sua porta o fazia lembrar do calor que aqueceu seus dias há alguns meses atrás.
Seguiu sua rotina, o dia seguiu seu curso. Em movimentos involuntários, suas pernas, quase que mecânicas, seguiam a mesma trilha para chegar ao mesmo lugar, onde viveria o cotidiano planejado. Nunca cansava de estar vivendo em círculos. A segurança da continuidade o protegia de tal maneira que não sentia a necessidade de pensar em seus atos. Tudo estava planejado. Um alicerce forte, uma estrutura milimetricamente arquitetada, um topo imponente. Uma construção fria.
Inabalável, seus anos passavam sem a percepção de mudanças. Os retratos urbanos, extremamente e eternamente mutáveis, não alteravam seu semblante comum. As cores que pintavam o mundo não tingiam sua face cinza.
Imperceptível, seguia duro e inexpressivo em direção a mais um dia. Indiferente, não percebia as horas correndo com suas pernas longas em seus corredores de concreto. Dentro de suas paredes, tudo permanece insignificantemente igual.
Permanecia impassível aos movimentos das folhas esvoaçando e tomando altura com o bater de asas das andorinhas. As expressões naturais não o motivavam a expressar emoção. A dureza optativa refletia em suas retinas imagens fixas e monocromáticas de tudo que há ao seu redor.
Em um verão que antecedeu o outono, o calor do seu corpo esfriou ao entrar em contato com sua pele seca. Pela janela da alma, tinha-se a visão de um jardim de inverno, com muitos galhos secos e um solo de areia. Alimentando lembranças de todas as estações como um moinho que gira em seu próprio eixo. Um moleiro produzindo diariamente seu sustento, um corpo inerte revivendo continuamente sua estabilidade. Um corpo que cai, um desperdício de carbono, uma presença ausente.

sábado, 13 de agosto de 2011

Biopsia

Carregava na mão uma pequena caixa, levando nela todos os seus restos de outros tempos que encontrou espalhados pelo chão. Não havia maneira de encaixá-los, como em um quebra-cabeça orgânico para reconstruir um corpo que não era seu. Nem nunca foi.
Abandonando a estética, descontruiu-se. Observava em si próprio os movimentos involuntários, as tremedeiras incontroláveis, o movimento dos cílios ao piscar os olhos. A sinapse.
Descontruindo estereótipos, aceitou a cabeça nua, os olhos vazios, as pernas disformes. A psique inconstante.
Caminhava com passos curtos e rápidos, observando o caminho a sua frente com a única preocupação de manter o foco no destino que pretendia alcançar, desconhecido. Segurando fortemente a alça que unia sua mão ao vasilhame que transportava os pedaços convencionais, sentia os dedos machucados pela madeira, misturando ferpas e sangue.
Carregava em sua mão uma pequena caixa, com resquícios dos recortes do que deveria ter sido para ser. Alguém. Ignorando regras, desregrou a existência para se reencontrar.
Em ignorância, acreditou que, como um carro, uma máquina, ao desmontar-se, ao toque visceral de si mesmo, encontraria a essência. De tão preocupado em se destruir, não construiu.
Carregava em sua mão uma pequena caixa. Retalhos destruídos, com odor acre. O corpo que necrosa, a estrutura que cai.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Versos Marcados

Eles tocavam apenas uma música.
Justamente, aquela música.
A única música que não queríamos escutar.
A música que tocou faz algum tempo.
Poderia ser qualquer outra, mas tinha que ser aquela.
A única canção que eu não queria escutar.
Aquela música que ele não podia ouvir.
Os versos que tocaram em um dia que ficou para trás.
Um dia que poderia ter sido como qualquer outro, mas não.
Foi um dia diferente.
E naquele dia, tocou essa música.
Aqueles antigos refrões ecoando em nossa memória como parte importante de tudo que houve.
Naquele dia.
Não um dia comum, não.
Um dia diferente de todos os outros.
Onde tocava uma canção.
A canção que tocava no dia em que nós.