quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

De Bonito

Clarisse,

Quando entrei naquele pequeno bote inflável, velho e com um motor extremamente ruidoso, pensei em você. Primeiramente, te imaginei olhando para veículo tão arcaico, e que teria que, dentro dele, encarar corredeiras, e diria que jamais faria aquilo com sua vida, que temia pela embarcação, e pelos dias que ainda viriam. Depois, reparando melhor em como se encontrava o bote, eu percebi que ele se assemelhava, metaforicamente, com teus pensamentos: sempre presos ao mesmo itinerário, corroídos pelo tempo, e apesar de extremamente destruídos e cansados, ainda percorriam sempre corredeiras perigosas, para depois, voltar ao mesmo ponto.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O Que Não Restou Em Mim

Caiu sobre o meu terreno como um meteoro em chamas. Modificou o meu relevo, e ainda assim, permaneceu intacto, como uma rocha. Desde o momento que ouvi seu nome, sem nem nunca ter visto seu rosto, eu já sabia. Eu sempre soube. Que no dia que eu tivesse contato contigo, algo em mim seria arrancado bruscamente, sem escrúpulos. Eu sempre soube, pequeno. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Encontro Inocente

Insistiu tantas vezes em me levar para sair, que cedi. De início, as leves mordidas no canto dos lábios me faziam suspirar, me tiravam arrepios que percorriam toda a coluna dorsal. Os beijos no pescoço me faziam gemer baixinho, o toque dos dedos entre as coxas me contorcia os músculos, me causava delírios e medos.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Um Dia a Menos

Você tem objetivos, pequena? É, objetivos. Sonhos, planos, ambições, desejos. Algo que você almeja muito, ou que deseja muito ser, quando crescer. Aquilo pelo que as pessoas vivem. Aquilo pelo que vários morrem, vários matam. Todos somos ensinados, desde pequenos, que devemos tê-los. Os objetivos. O sonho de crescermos, pelos nossos meios, com os caminhos que nos são trilhados, e depois continuar a construí-los. Somos todos direcionados à nossa missão, ao nosso destino. Que todos tem um destino. E que, para todos, esse destino foi planejado para ser brilhante, basta que nós lutemos por isso. E você, pequena? Você os tem? Os objetivos?

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A garota que você ama

A garota que você ama entrou em sua vida quando você ainda era uma criança, aos 7 anos de idade. A casa ao lado, que estava vazia há tantos anos, fora ocupada por um casal jovem, com uma única filha. A menina, que tinha a mesma idade que a sua, tinha os cabelos, negros, bastante enrolados, que, por mais que a mãe se esforçasse em arrumá-los, permaneciam embaraçados. Era pequena, magra, a pele bastante clara, e olhos azuis. Você nunca foi de brincar na rua, de subir em árvores, de jogar bola no parquinho do outro lado da rua. Nunca foi de muitos amigos. Ela, também, não parecia gostar de se misturar. Quando você ficava a olhar, pela janela do seu quarto, os meninos no playground, nunca a vira com eles. Apenas a via quando ia sair com sua mãe, e ela estava saindo com a mãe dela. Raras vezes. E, mais raramente ainda, você tinha coragem de olhar fixamente para ela. Sabia, apenas, que ela era linda.

sábado, 28 de setembro de 2013

Confissão Sussurrada

Não sei nem se deveria, pequeno, mas preciso contar-te, sussurrando em teu ouvido, o que me causa a tua presença. Te contar, sim, sussurrando, pra que não ouçam os outros, pra que eu não me denuncie. Pra que você não me denuncie. Sim, pequeno, porque se conto em sussurros, se presume o segredo, e eu gostaria que você guardasse, sem rancor, somente pra você, o que eu venho a te confessar agora. Confissão essa, que faço, quase como se faz a um padre, pequeno. Porque o que te conto agora soa, até para mim, em pensamento, como pecado. Mas eu preciso dividir contigo, o que me causa estar ao teu lado.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Do Rio de Janeiro

Clarisse,

Hoje o sol bate nas águas, e a luz refletida no mar me faz arder os olhos e me salga a pele ressecada. Você não aguentaria a força dos raios e se irritaria facilmente com a areia encostando a sola sensível dos seus pés. Há quanto tempo seus pés não encontram o chão, Clarisse? Há quantos séculos você não pisa um solo que seja de verdade, que não seja de ilusão e sonho?

sábado, 24 de agosto de 2013

Em Cachecóis e Cabelos Soltos

Eu senti o cheiro da chuva. Quando pisei pra fora de casa, naquele dia de inverno, eu senti. Por mais que você viesse a insistir depois que seria quase impossível chover em um dia tão frio, com tantas estrelas no céu. À todo momento, eu esperava ouvir o primeiro trovão. À todo momento, eu iria esperar você dizer que tinha medo de raio e eu oferecesse meus braços pra te proteger. Não dos raios. Só do medo do raio. E te guardar do frio.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Do Mundo Cão

Clarisse,

Percorrendo essas ruas sujas, me lembrei de você. Deitada em sua cama, de cortinas fechadas, sem deixar o sol entrar. Me imaginei te guiando por esses caminhos oblíquos, de paredes cinzas, e te via triste. Você pintou seu mundo tão bonito, em tuas portas cerradas, em sua torre de princesa, que essa verdade te machucaria os olhos, te destruiria as narinas, te faria sofrer. É por isso que eu receio em te escrever. Eu não sei o que você faria se eu te contasse tudo que eu vi, tudo que vivi. As pessoas que conheci.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O Arrastar do Vento

É, menino. Talvez o dia passe lento, se arraste. Talvez eu me arraste até o dia passar bem devagar, devagar. É, menino. As horas correm vagarosas e você se mantém tão longe. Eu leio as linhas dos dias e cada passo interrompido dos ponteiros dos relógios. Eu leio cada respiração. Eu leio os teus olhos. Eles não me dizem nada novo, mas eu gosto de ver a maneira como me dizem sempre a mesma coisa. Gosto de ver as palavras silenciosas que eles usam.

sábado, 17 de agosto de 2013

Moreno

Eu desenhei os teus passos. Te encontrei em um caminho oblíquo, estreito e obscuro. Mas ainda assim, eu consegui me atentar a cada detalhe. A intensidade do teu pisar, a força da tua respiração, a cadência dos teus movimentos. E desenhei, cada um dos teus passos. Em folhas brancas, com lápis negros. Eu reproduzi cada momento do teu andar em vários quadros que demonstravam claramente que sim, eu te observei, moreno.

terça-feira, 16 de julho de 2013

O Mergulho

Se houvessem dias. Carrega o meu peso, menina. Me ajuda a levantar. Se houvessem dias como os antigos, sozinho me levantaria. Minhas pernas perderam a esperança, menina. Desaprenderam a caminhar. Meu corpo preciso de escora. Minha alma pede esmola, menina. Sente pena de si. Menina, não tenha pena de mim. Não queria que fosse assim.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Língua Morta

Eu só queria te dizer como dói. Ontem, depois desses meses todos, eu decidi abrir a gaveta. Aquela gaveta, que eu te dei pra guardar as tuas coisas, pra você chamar de tua, quando eu te chamei pra mim. Pra me chamar de tua. A última vez que eu a abri, foi quando eu joguei todas as tuas coisas de qualquer jeito dentro de uma sacola de lixo e atirei pela janela. Tudo que era seu foi expulso. Só ficou a caixa na gaveta. A camisa que era tua, e que eu usava pra dormir, que eu nunca te vi vestido. A tua marca no colchão.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Se Você Vier

Deita aqui, pequena. Encosta tua cabeça em meu colo, deixa eu te acalmar. Te explicar coisas que talvez você seja jovem demais pra saber. Mas eu não quero que você sofra o que eu sofri.
Deixa eu acariciar o teu cabelo, e te dizer como você é linda. Uma pequena boneca, escondida atrás da força que não tem, mas diz ter. Dos olhos penetrantes. Tão pequena, escondida atrás de uma estante de discos velhos, livros empoeirados e bonecas de porcelana. Todas sem cabeça.

domingo, 26 de maio de 2013

Em Mãos Sujas

Haviam marcas de dedos no rosto. Estava vermelha a pele embaixo dos olhos, ao lado da boca. Recordo do dia em que eu acordei com os dentes quebrados, caídos no assoalho velho e podre. Haviam pedaços no chão. Um pouco de sangue na boca. O gosto era bom, me lembrava algo doce. Me lembrava o tempo que eu comia carne crua pra matar a fome.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Ferida Aberta

Veja só. Arrastando os pés na calçada, depois de um dia todo de trabalho, cansada. Ela segue. Já marcara o compromisso de encontrar o velho amigo, conversar não sabe o quê. Procurara mil desculpas pra cancelar o compromisso, mas não encontrara algum. Não sabia o que queria o velho amigo, que não via a tempo tanto, que nunca vinha visitar.
Tinha raiva da solidariedade, esperava não falassem do marido que perdeu. Nem em guerra, nem batalha, nem assalto, nem ataque. Perdera para outra mais nova, bem mais bela, mais formosa, pra mostrar à sociedade. Não o amava a muito tempo, mas doía, bem no peito, a maneira que ocorreu. Humilhada e destruída, o marido lhe dizia: nunca fostes quem amei.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Leito de Espera

Vem. Me encosta na parede e grita no meu ouvido. Prende o teu corpo no meu. As portas estão abertas, corre, e invade o meu quarto. Cuidado com o tapete no corredor, não escorrega, não tropeça. Não caia. Eu caio todos os dias no abismo entre o meu quarto e o mundo aí fora. Eu estive aqui, esperando você me carregar com os teus braços fracos. Me arranca dessa cama com teu olhar fulminante, e me arremessa nas tuas mãos.
Corre. Que o tempo é pouco, e passa voando quando você está aqui. Eu vejo você vindo e indo, e você nem chegou perto. Eu acompanhei os teus passos, de olhos fechados, e em silêncio, enquanto você seguia sem voltar.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Sem Reparos

Então, me conta o seu dia. Senta aqui, espera um pouco. Não, não vai embora ainda. Eu só queria ouvir um pouco tua voz, te ver sorrir. Te contar que ontem à noite eu sonhei contigo. Que teu cabelo tava comprido, e você me perguntou se eu gostei de você assim. Estava até o ombro, e te deixava com um ar angelical. Emanava um brilho de teus olhos que eu jamais vira antes. Teus olhos me cegavam, tanta luz. Me contou, em meu sonho, que tua vida tava ótima, e que viera me buscar, sorridente.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Paredes Mofadas

- Eu sempre soube

- Quem não?

- E agora, isso

- Nunca foi segredo

- Poderia ter sido evitado

- Não nos cabe

- Por quanto tempo?

- Julgar

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Inapropriado

- Eu vi
- Os dias são tão longos
- Acho que todos acabaram vendo
- Tem demorado pra passar
- Não fizeram nem esforço pra esconder
- Eu também vi
- Espero que não se torne frequente

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Desarmado

Como você, são poucos. Eu resisti ao andar do moreno nas praias cariocas. Me seduziam suas pernas, a maneira como se moviam a cada passo. Suas coxas bem definidas, sua panturrilha dura. Me prendiam contra o seu corpo, e me faziam suspirar baixinho. Me beijou pescoço ombros costas bunda pernas pés. Mas não me causou o arrepio pra me fazer ficar.

sábado, 13 de abril de 2013

Pra Fora dos Trilhos

Eu vim te buscar. Eu vim te buscar como prometi. Vim de carro, porque, por mais que more duas quadras da estação, você pode estar trazendo muita bagagem, e seria pesado carregá-la na mão, andando na rua. Eu não sei se conseguiria me carregar por duas ruas depois que você descesse do trem. Eu vim bem cedo, você não me disse qual trem pegaria, qual horário chegaria, mas não tem problema. Eu cheguei bem cedo, pra ver cada um que pular de cada vagão, pra talvez ser você e pra poder te levar pra casa. Sai de casa, o sol ainda não tinha nascido. 5 e pouco da manhã, eu já estava aqui. Nem tomei café em casa, pra não perder o trem das 5:25, que é o primeiro a chegar todos os dias. Você não estava

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Toque Dela

Eu reconheço o toque dela. Ele é tímido, inocente. Me toca a pele, ponta dos dedos. Pouco me encosta, temerosa. Me segura a mão em raras vezes. Me toca com o olhar, que sorri, singelo. Me acaricia o cabelo, de leve, causando um sono suave.
Eu reconheço o toque dela. Ele é carinhoso, amoroso. Me segura forte a mão enquanto andamos. Me abraça, muito forte, e me beija, desbravando, lentamente, cada centímetro de minha boca. Me sorri, enorme, e me diz sobre o amor que a faço sentir. Toque suave, de suas doces palavras.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Sala de Estar

Olhei ao meu redor, e depois de alguns segundos, comecei a reparar na desordem. Tudo está aqui. Disso eu tenho certeza. Mas está tudo jogado, espalhado no assoalho de madeira velho, e um pouco apodrecido.
As estátuas de gesso, presentes de mamãe, agora são corpos estilhaçados, sem cabeça e membros destroçados. Piso, aqui e ali, em cacos dos humanóides quebrados, tomando cuidado para não pisar em algum fragmento meu. Cuido também para não pisar nos cacos de vidro, provenientes da televisão derrubada, das janelas esmurradas, dos porta-retratos. As fotos, no entanto, permancem intactas. As memórias ali contidas se danificaram mais facilmente que o papel.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Uma Xícara para Dois

Usava luvas. Escondia as mãos cansadas sob a pele de algum animal. Desconhecia o couro. Desconhecia as mãos. As vestes, assim como as luvas, demonstravam que o corpo pálido esperava um frio que há tempos não se via pela região. O casaco comprido, também do couro desconhecido, deixava à mostra apenas as mãos enluvadas, a ponta das botas batidas e a cabeça. Seus olhos estavam distantes. Eu sentia um frio jamais visto emanando da face abatida.
Chegara atrasada, como de costume. Nunca fora muito de pontualidade, principalmente nos últimos tempos. Ela sempre dizia, porém, que não eram atrasos. Era apenas sua noção de tempo que era diferente da dos demais. Em dias passados, diria isso seguido de uma longa e alta risada. Hoje, os lábios cerram em um silêncio arrebatador.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Flores Vivas

Concreto. Tão consolidado quanto. As rochas contra as quais seu pai se atirara.
A base sólida do lar. A família exemplar, os olhos dos vizinhos penetrando nas paredes bem construídas de nosso lar intocável. A cidade nova, os novos amigos, a casa. A casa nova. O mesmo lar. Mas, a casa é nova.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O homem que venceu o banco imobiliário


No próximo ato ele irá abraça-la. Ternamente. Colocará a mão direita em suas costas e, segurando em sua mão esquerda, fará com que ela incline seu tronco para trás, inclinando seu próprio sobre o dela, como se dançassem. Mas estão parados, ambos.
Os olhos vidrados. Um encarando o outro. Os dois corpos imóveis, como estátuas. Como que enfeitiçados, esperando que o feiticeiro que os petrificou os tire daquela situação.
Como se presos aos olhos um do outro.
Reinavam solitários na sala vazia. As paredes, o teto e o chão completamente brancos, assim como suas vestes e a pele de ambos.


As primeiras gotas que chegaram ao chão eram de um tom diferente do chão. Ou do teto. Ou das vestes de ambos.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Em Fogo e Carne

Um espaço de tempo. Corria com passos largos. O espaço de tempo era curto demais para perder tempo observando a paisagem. As pernas doíam absurdamente, a cada passo. Os pés formigavam, por vezes não tocavam ao chão. Ou talvez, não mais os sentisse tamanha era a intensidade que infligia impulso aos seus membros inferiores.
Fazia pouco tempo que ouvira a explosão. Aquele barulho ensurdecedor. Mas sabia que o tempo que levaria para destruir seria muito rápido. Era melhor sair logo dali.
Evitava olhar para trás. Temia encarar o fogo, a fumaça, a fuligem, as ruínas. O sangue, a pele, os membros, os cabelos. Os gritos, as faces de desespero.
Apenas corria, fugindo da destruição iminente. Não tivera forças para ajudar a ninguém. Também não tivera vontade. Não tivera vontade. Que queimem, as bruxas.
Era sua chance de se sobressair, ou cair por terra. Que permaneça só.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Antiquário

Houve um tempo. Sentado em sua cadeira de madeira quase podre, ele se recorda de que houve um tempo. As memórias daquele tempo não eram tão claras. Esquecia com facilidade dos dias longínquos, conforme suas mãos ficavam mais trêmulas, e se tornava mais difícil arrancar pedaços de sua pele com os dedos enfraquecidos pelo tempo.
Naquele tempo, ele recorda-se vagamente de que haviam outras pessoas na casa. Chegava a acreditar que a casa teve, um dia, mais andares, tamanha era a quantidade de pessoas diferentes que vinham habitar suas fracas e raras lembranças. Não tinha absoluta certeza se eram várias pessoas diferentes, ou diversas faces das mesmas criaturas que dividiam com ele seu passado.
Lembra-se ainda mais vagamente que haviam outros lugares no mundo, além do quarto velho e escuro, do divã pútrido que o servia de leito, e da mobília podre e cheia de cupins. Que haviam lugares belos, e mais pessoas ainda do que haviam em sua casa.
Houve um tempo. Mas não há mais.