quarta-feira, 27 de maio de 2015

Ao Pisar o Asfalto

Saí para caminhar em um dia qualquer. Era só mais um outro novo dia. Parara de fazer qualquer coisa há alguns anos. Estudar, trabalhar, me divertir. Não. Minha rotina seguia girando em si mesma num moinho de tédio e comodidade. Eram, inclusive, basicamente as mesmas luzes e mesmas cores que eu via todos os dias, nas mesmas ruas. Não que eu acredite que o mundo parou em tons pasteis para sempre. Acredito, sim, que os meus olhos já tinham criado aquela imagem tão firmemente, que nada mais fosse visualizado além dessa fotografia do tempo. Nesse dia, porém, algo chamou minha atenção, quando ao virar a esquina
Atenção, ao dobrar uma esquina
Aquela música, aquela voz aguda, aquele instrumental cativante. Toda aquela canção parecia conversar comigo, pois eu sorri e 
Uma alegria, atenção menina

E ainda, me convida
Você vem, quantos anos você tem?
Começo a me perguntar se não estou ficando louca, quando eu respondo em pensamento, sem nem mesmo perceber. "23 anos". Estive tão absorta em meus pensamentos, que só me dei conta que estava atravessando a rua quando um carro freia muito próximo a mim
Atenção, precisa ter olhos firmes
Não querendo aceitar que estava me vendo doida, por achar que uma música numa rádio esteja dialogando comigo, eu penso se não vi o carro vindo em minha direção porque o sol da manhã estava muito forte, e remexo a bolsa, em busca de meus óculos escuros
Pra este sol, pra esta escuridão
Me percebo, então, olhando ao redor. De repente, a rua ficou cheia de pessoas que não são as pessoas que eu normalmente vejo no meu trajeto diário. Pessoas diferentes, rostos desconhecidos, olhares estranhos. Começo a sentir-me observada, julgada, perseguida, como se todos os olhos tentassem me observar por dentro das minhas vestes e todas as mãos tentassem me despir dos meus escudos. Senti medo de estar ali, medo de ser eu mesma, medo de ser real e
Atenção, tudo é perigoso
Esse medo passou a me consumir, e subir pelas minhas pernas, me agarrando ao asfalto quente e duro da avenida. Estava novamente atravessando a rua, aquele mar de olhos e peles e corpos me arrastou para a faixa de pedestres, e, vindo das duas direções, me jogavam para frente e para trás e não me deixavam chegar ao outro lado da avenida. Apavorada, gritei alto, mas parece que não fui escutada por nenhum dos integrantes daquela massa sufocante, e então, me apegando ao que resta de fé em mim, pedi para que alguma força me fizesse conseguir seguir
Tudo é divino maravilhoso
ATENÇÃO PARA O REFRÃO
Mas ainda continuava presa ao meio do caminho, onde não haviam forças para vencer a massa infindável de corpos que me rebatiam de um lado para o outro. Fechei, então, os olhos, em silêncio, e esperei que tudo aquilo se acalmasse, e eu pudesse voltar a seguir o meu dia. De olhos fechados, então, escuto os gritos vindo dos dois lados, a buzina muito alta. Abro os olhos. Há uma placa de caminhão na altura de minha cintura.
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte.


(Texto em itálico: "Divino Maravilhoso", composta por Caetano Veloso & Gilberto Gil, 
mais conhecida na voz de Gal Costa, que gravou a música em 1969)

Nenhum comentário:

Postar um comentário