domingo, 24 de maio de 2015

Bastão de Combate

- Meu dia foi bem diferente do que estou acostumado. Meus dias têm tons de frieza. Acho que posso chamar assim. Mas hoje, meu dia teve uma cor azul. Azul, porque sou garoto. Azul, porque o céu é azul. Azul pra combinar com meu casaco. E com a cor do abajour. A-B-A-J-O-U-R. É francês, não é? Eu conheci um francês. Ele gostava de azul. Azul porque o mar tem tons de azul. Agora tudo parece ter mais sentido.

- Eu fiquei com vontade de entrar naquele rio, hoje. De ser aquele rio. De sentir cada uma das pedras que você atirou  nele, de ouvir de fora tudo que era dito. De ser imenso. De te carregar pela correnteza a  fora. De ser natureza, e de ser amado por isso. E de lavar embora os teus anseios como manchas numa roupa, de verdade. De ser a água pra limpar.

- O que me chamava a atenção - entre os pratos e xícaras e entre dois ou três olhares - era um quadro posicionado ao lado do bule. Nele, eu via dois prédios - um azul, e um amarelo - imersos num céu duma tarde de verão. Eram oito? Sim, oito janelas. Três no prédio amarelo. Cinco no prédio azul. Não era uma aquarela. Não era feito por mãos profissionais e dedos adestrados à pintura. Era  grosseiro. Pode-se dizer que era tão grosseiro que chegava a ser errado. E, de tão errado, chegava a ser belo.A minha vida é errada. Ainda acredito que a minha vida pode ser bela.

- Eu fiquei preocupado, quando percebi que você tremia, hoje. Primeiro, no café, quando estava expondo seus sentimentos, chegando à alguns momentos de fúria com o passado. E depois, na beira do rio, quando começou a tremer de frio. Eu tenho um senso de proteção pelas pessoas que prezo. Algo que é maior que eu. Um desejo imenso de proteger de tudo que atinge: frio, dores, tristezas, pessoas. Tive vontade, nas duas vezes, de te abraçar, te proteger, de ser o seu escudo, e te dizer baixinho, só pra você ouvir, que tudo pode, e vai, ser melhor.  Todas as nossas vidas são erradas. A minha sempre foi extremamente conturbada, mas, eu nunca deixei de acreditar que ela também pode ser bela. E a sua também pode ser. E eu quero estar por perto, para poder ver o sorriso que eu vi hoje enquanto você atirava as pedras no rio, deixando de lado tudo que te incomoda, pra deixar vir a fora os traços belos e travessos de uma criança alegre, traços estes que te suavizaram, e que te cabem muito bem.

- Vivi cercado de pessoas que não pertenciam a ninguém, mas que esmagavam a cada abraço - e o pavor aumentava na medida em que eu encarava declarações de amor com mais seriedade. Não falo de uma, duas ou três pessoas. Falo de muitas. Falo por muitas. Nesse momento, tomo a frente dos que não ousam falar. Às vezes as palavras soam com certa estranheza pra quem não sofreu por um (ou vários) amor(es). Me senti numa estrada aberta. Liberdade. Viver sendo jovem. Fazer a vida valer a pena; transformá-la em arte. Leave the boy alone. Estou sozinho. Pretendo ficar assim. Posso parecer triste. Mas eu sou livre.

- Me pegaram de surpresa suas declarações e confissões, hoje. Surpresa boa, pela segurança em suas palavras. Por mais que, em alguns momentos, tenha sido até um pouco doloroso. Por ter a sensação de que você se exige e se cobra e se julga demais, e por ser jovem demais para isso. Por ter me identificado com várias coisas que você disse, e nunca ter encontrado a maneira exata de me expressar. Por ter esse senso, quase maternal, de proteção por quem eu prezo, e ter ficado essa vontade de te proteger de todo o mal que há no mundo.
 
- Pensei em muitos "tic" e "tacs". Sobre um relógio. E garanto que isso tudo junto possa parecer uma completa loucura. Eu contei os passos hoje. Foi um trabalho voluntário. Foram 23 passos até a porta. (Tic) Seis ladrilhos. Quatro vezes seis. Consegui contar seis partes. Cento e quarenta e quatro peças. Talvez eu me visse como a centésima quadragésima quinta peça. (Tac) Sem encaixe. (Tic) Sem desenho. (Tac) Sem valor, poderia dizer. (Tic) Quem, afinal, penduraria um ladrilho ao lado de uma foto de família na parede? (Tac) Desci a escada em oito passos. (Tic) O algodão no cimento áspero - agora (Tac), já parte da minha memória - me martelava as entranhas. Seria eu um algodão? Somente se ele fosse bem feio. (Tic) O ladrilho tem mais significado pra mim. A centésima quadragésima quinta. (Tac) A que ninguém quer. (Tic) A que sobra. A sem par. - Hora de partir - dizia o deus relógio. E segui. Um tic. Um tac.

- Eu fecho os olhos, e só o que eu vejo é um labirinto gigante, e um gosto amargo de solidão na boca. Como se eu estivesse me alimentando de algo que não deveria. E estou nesse labirinto procurando algo melhor para me nutrir e me manter de pé, por mais que minhas esperanças de encontrar isso sejam quase nulas. Mas eu ainda continuo seguindo, mesmo nos trechos mais escuros, tateando as paredes frias, até alcançar um oásis, um jardim do éden, uma fonte qualquer, e conseguir chegar ao fim.

- Vejo tudo isso apenas como poesia barata. Palavras jogadas ao ventilador. Só porque é bonito, a ideia de espalhar ideias por aí. É melhor do que deixá-las dentro de um coração. Acho corações fraco demais. Acho a natureza perfeita, mas ela poderia ter colocado mais razão nessa parte. Fazer ter mais sentido.

- Chame de palavras no ventilador. Vômito criativo. Dê o nome que quiser. Escrevi várias vezes, assim. Talvez, nenhum daqueles textos mais faça algum sentido.  Mas, eles foram necessários no momento em que foram criados. Para que eu pudesse jogar tudo aquilo fora. Para tirar do coração. Por ele ser fraco demais. 

- Há uma técnica no cinema. Você fotografa um objeto milhares de vezes. Sempre imagino um pêssego maduro. vivo. Sendo fotografado até apodrecer. E some. Vira outra coisa. Se transforma.

- Tudo se transforma. Tudo é transcendental. Todos somos. É bobagem acreditar que algo que façamos ou somos ou falemos será absoluto, será imutável. Que será eterno. Somos, todos os dias, atingidos por energias e situações e vontades e desejos e realidades que nos fazem rever palavras, promessas, conceitos, sonhos, realidades. Nós não somos absolutos. É quase impossível carregar uma opinião ou uma vontade que não seja refutável. A nossa instabilidade é caos, e é crescimento.

- Caos. Sempre gostei da palavra caos. Acho bonito e refinado o som dela. Caos. Não te parece que falta algo? Ela é autoexplicativa. Acredito que existe uma ordem na desordem. Não vejo muito proveitoso ter uma bússola de moral apontando ao norte. Acho prudente levar a vida em Dó e apontar ao Lá. Mas os extremos, às vezes, não fazem boa melodia. Esse instinto camaleônico sempre me fez ter uma inconstância imensa. Como o rio de hoje. Oscilante como a pedra que batia na água, impulsionada pela minha força.

- Assim como o rio de hoje. Eu me senti tão apaixonado e tão entregue e tão sintonizado com aquele lugar, com aquele momento, que parece que agora há algo faltando. Eu olho as fotos que tirei, mas elas não fazem jus a sensação que eu tive e que continuo tendo até agora. Que eu deixei algo meu lá. Ou em algum outro lugar. Ou em alguma outra pessoa. Ou com você. Ou com o pato que não parou pra eu tirar uma foto decente. Mas que algo de mim, hoje, foi entregue. Disso, eu tenho certeza.

- E tudo isso, talvez, seja apenas um capricho meu. Uma vaidade qualquer.

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