Em casa, então, eu fico em paz. Sozinho, olhando para as paredes e imaginando o que elas sentem, o que elas acham de cada um de nós. Sim, qual é a sensação de uma parede? Se ela é formada por átomos, ela também tem que sentir algo, ao menos o nosso toque, a movimentação elétrica formada entre a mão e ela mesmo, com certeza, ela sente.
Mentirei se disser que nunca tentei me comunicar com elas. Partindo do principio que tijolos são feitos de barro, de terra, que o cimento e o cal são retirados da natureza, indica que estão aqui a muito tempo, até antes de qualquer um de nós. E com sua idade, talvez, se soubessem falar, poderiam passar tanta experiência que talvez comovessem até o mais estúpido, insensível ou desinteressado. E talvez elas me compreendessem, e eu encontraria, então, alguém que realmente valesse a pena compartilhar a minha vida.
Impulsionado pelo tédio, fico a caminhar pelo pequeno apartamento (um cômodo de cada tipo: quarto, sala, cozinha, banheiro), cujo aluguel pago com o meu trabalho para uma empresa de publicidade. Não é um trabalho regular, sou apenas chamado para grandes projetos, quando eles precisam de um slogan grudento e de idéias malucas e atrativas para algum comercial capitalista. E assim, eu consigo tirar o meu dinheiro. Nunca me perguntaram se eu era formado, nunca quiseram saber nada sobre mim, apenas leram um dos meus contos, que um conhecido levou até eles, e acharam minha imaginação bastante aguçada, e assim, eu fui contratado. Nunca imaginei ver uma pessoa formada implorando alguma grande idéia de alguém que tinha desistido várias vezes inclusive de continuar a viver, porém, agora presencio isso regularmente.
Vou até a sala, talvez encontrar algo para fazer durante algum tempo. Na sala não estão muitas coisas, apenas um sofá velho, uma mesa redonda com 3 cadeiras, uma estante onde guardo várias das coisas que são realmente importantes para mim, e sobre ela um aparelho de som. Várias pessoas perguntam por que não possuo televisão. Enquanto você senta em frente à televisão para ver como andam os artistas, para saber quem casou e quem separou, para saber quem deu uma grande festa, enquanto você perde seu tempo com coisas inúteis, alguns tantos canais passam coisas muito mais importantes e que talvez poderiam acrescentar alguma coisa útil a sua cabeça vazia. E são exatamente estes canais, tão úteis, que são só disponíveis com televisões a cabo, serviço pelo qual o meu dinheiro não permite que eu pague. Ou seja, para que eu preciso de uma televisão? Para ver novelas?
Ainda na sala, começo a procurar meus porta CDs. Música é algo que realmente gosto, porém nunca tive talento nem para tocar triângulo. Escrevi alguns poemas quando mais novo, porém eu não sei manter tantas idéias em alguns versinhos. Mas admito que realmente música faz parte da minha vida, em vários momentos, com vários sentidos. Música para acabar com o silêncio. Música para acalmar. Música para extravasar as raivas. Música para lembrar alguém. Música para tentar esquecer. Música para ouvir quando se está com alguém. Música para se ouvir sozinho. Música para fazer festa. Música para destruir. Música sem conteúdo. Música revolucionária. Música para expressar os sentimentos que todos sentem, mas não sabem como demonstrar.
E, depois de retirar alguns quilos de bagunça da velha estante de compensado, eu encontro meus porta CDs. São exatamente 3, divididos por freqüência com que eu os ouço. O terceiro, menos importante, são alguns CDs comprados simplesmente porque eu gostava de uma ou duas músicas, e que hoje já não fazem tanto sentido assim para mim. O segundo traz CDs de várias bandas diferentes, são mais novos, mas no futuro, vão ser tão importantes quanto os que residem ali, no terceiro. E o primeiro porta CDs, o de aparência mais feia, é o que traz os CDs das 3 bandas favoritas: Nirvana, Strokes e Silverchair. Cada uma diferente da outra, mas cada uma com um significado especial.
Kurt Cobain, mesmo quando sua banda se tornou extremamente comercial, escrevia músicas que se encaixam, e se encaixarão sempre na vida de alguém no mundo. Enquanto houver vida, fracassados e desapontados sempre habitarão neste planeta.
Strokes falam de coisas banais, pessoas banais, situações banais, mas conseguem fazer músicas muito boas enquanto divagam sobre o dia-a-dia.
E se há uma forma de dizer o que é música, ao meu ver, é ao ouvir Silverchair. Graças aos sofrimentos, aos problemas e as doenças de Daniel Johns, o mundo presenciou vários minutos de raiva, angústia, depressão e sofrimento em seus discos. Mesmo agora, que ele está melhor, mais saudável, ele continua a dizer várias verdades sobre o mundo, dando bofetadas morais em várias pessoas vazias e interesseiras espalhadas por aí.
Desse porta CDs, retiro Freak Show, álbum de 1997 do Silverchair, coloco-o no aparelho de som, e cantarolando Slave, jogo meu corpo dolorido no sofá, talvez apenas para descansar, ou talvez eu durma um pouco. Há tantas noites tenho ficado acordado, perdendo meu tempo para remoer meu passado, que talvez eu consiga tirar uma soneca deitado em meu sofá duro e velho.
Memórias, fragmentos de vida que já passou, deveriam realmente ficar para trás. Para que nosso cérebro guarda momentos que nos machucam tanto? Se ele realmente sabe que isto dói até de ser mantido, para que ele deixa que as imagens desse momento voltem a figurar em sonhos e pensamentos? Memórias deveriam ser opcionais, deveria nos ser dada a opção de escolher o que vai ser guardado para sempre, e obviamente, seriam guardados somente os momentos bons, aqueles que nos dão prazer de serem lembrados, que ainda nos fazem rir, remontar perfeitamente os momentos, e não aqueles momentos que nos deixam marcas eternas de dor e decepção.
Por que alguém precisa lembrar que um dia foi deixado de lado por ser pobre, ou feio, ou impopular? Qual é a importância daquele dia em que você foi humilhado perante todos os seus colegas de classe por ser o pior aluno em tudo? Como alguém pode viver com a lembrança de que nunca teve reais amigos, mas apenas pessoas que cruzaram o seu caminho porque precisavam de alguma coisas que podia fornecer?
Não, isto realmente não é necessário ser mantido por ninguém, qualquer pessoa que possui memórias assim as odeia muito. Principalmente quando essas memórias e outros vários momentos começam a perturbar-lhe o sono.
Algumas filosofias costumam dizer que a vida é um presente. E algumas pessoas dizem que é falta de educação devolver presentes. Porém, a vida é um presente que eu realmente gostaria de poder devolver. Pois, se a vida é um presente, é um presente de grego, uma daquelas coisas que temos em casa e, quando queremos nos livrar dela, damos de presente. Ela é dada, e ninguém nunca nos diz o que fazer com ela, apenas dizem que nós devemos viver corretamente. Mas ninguém nunca sabe o que é realmente correto, então vivemos todos na dúvida e no erro. Ela nos é dada, sem motivo aparente, e sem perguntar se realmente a queremos. Se soubéssemos antecipadamente para onde estávamos sendo mandados, e se tivéssemos a escolha de receber este “presente” ou não, certamente decidiríamos por sermos mal educados e não o aceitaríamos.
E sim, quando o CD já está tocando Cemetery, eu consigo pegar no sono. O sofá realmente me trouxe paz, me deixou relaxar em sua superfície dura e não me trouxe nenhum sonho perturbador. Até cheguei a sentir um momento de felicidade sem motivos aparentes.
Não suporto pessoas que finjam estar felizes. Felicidade deve ser algo espontâneo, algo que nasça em nós por alguma coisa muito boa ou engraçada acabou de acontecer. É simplesmente ridículo ver alguém que sempre sorri, pois todos sabemos que ali está um ator, e da pior espécie. Não é possível ser feliz o tempo inteiro. Felicidade é como um lapso de memória, é no momento em que seu cérebro relaxa que você sorri, pois nesse momento lhe é permitido esquecer que verdadeiramente você é triste, que todos o somos.
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