Pode ir, vai. E não precisa voltar tão cedo, vai. Eu resolvi limpar a casa, varrer as folhas das calçadas, tirar os lençóis da cama, colocar as roupas pra lavar. Também vou limpar as louças, guardar no lugar, deixar a pia livre, e arrumar a torneira, que por mais forte que fechemos, não para de pingar, de forma alguma.
Eu falo sério, pode ir. Vai dar uma volta, sentar numa praça, terminar de ler aquele livro que te dei no Natal passado, que você queria tanto, tanto, que nunca sequer passou do capítulo 3. Observar os transeuntes, jogar milho aos pássaros, atirar o pau no gato, catar folhas secas, arrancar as pétalas das flores, sentir o cheiro da cidade. Talvez entrar numa cafeteria, tomar um latte macchiato, ler um jornal de anteontem com notícias que já não fazem mais sentido sobre alguém que já se tornou irrelevante, ouvir, sem querer, a conversa do casal na mesa próxima, que parece discutir, principalmente quando o rapaz deposita os braços sobre a mesa, e a moça cobre o rosto com as mãos e vai ao banheiro.
Eu vou ficar. Vou ficar na casa, vou colocar tudo em ordem, colocar tudo no lugar. Reorganizar as prateleiras, colocar os livros por ordem alfabética do sobrenome dos autores. São muitos títulos, eu sei, mas acredito que terei tempo de limpar um por um, e ainda dar uma folheada naqueles que eu mais gosto, os que tem as páginas mais gastas e amareladas, e o cheiro de poeira e lembranças boas. Vou abrir as caixas escondidas lá no fundo da memória e encontrar o velho manual de nós dois, talvez. Nós temos este mal, de nunca lermos direito os manuais quando adquirimos algo, e aí, quando apertamos algum botão que faz tudo mudar de configuração, nós lembramos que talvez, só talvez, o manual possa sanar a dúvida. Aí, é a hora de tirar tudo do lugar pra encontrar onde foram jogadas as páginas brancas e finas que vieram no fundo da caixinha do produto. Talvez, se o tempo ajudar, também vou colocar nossos casacos no varal, para tomar um sol. Está ficando frio, logo logo vamos precisar usá-los. O inverno está chegando, já podemos reparar, e eu sinto a temperatura caindo cada vez mais, dentro e fora. De casa. Dos ossos. Dos nossos.
Por isso eu te digo, vai. Pode ir, sim. Vai dar uma volta, vai ficar um pouco só. Ou encontrar algum amigo, sentar para um chá, uma bebida no bar, algum filme underground no cinema, uma peça de teatro de comédia pastelão. Vai, vai sim. Prefiro te deixar ir, pedir que vá, porque assim, eu sei que você retorna. Afinal, se eu disser que não, e você fugir, talvez esqueça o caminho para voltar.
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