Havia algo de errado no retrato de Filipe.
Não sei se a foto havia perdido cor com o efeito do tempo, se as traças haviam corroído parte do papel, ou se a umidade distorceu levemente a imagem do jovem na foto, mas, ao olhar para ele depois de tantos anos, já não o reconhecia.
"Mãe, vem ver. Não há algo de errado no retrato de Filipe?", gritei da sala, enquanto minha mãe estava na cozinha, que respondeu com um grunhido que tenho quase certeza que soou como "você tá ficando doido, menino".
Filipe é meu irmão gêmeo. Mesmo dia, mesmo parto. A cara e o biotipo, totalmente diferente do meu. Bivitelinos. Sabe como é, duas placentas. Duas formações. Nenhuma semelhança física, menos ainda de caráter. Em comum só o dia de nascimento, o signo, e o segundo nome. José. Filipe e Guilherme José. Não, não é sobrenome.
Eu fui o segundo, ele era o "mais velho", apesar de eu nunca concordar com esse conceito de considerar alguém que nasceu 13 minutos e 27 segundos antes de mim como meu irmão mais velho, e em consequência dar a ele esta suposta autoridade que um primogênito teria. Porém, ele conquistou isso sem muito esforço.
Desde muito cedo, Filipe sempre foi o mais extrovertido. O mais divertido, o mais brincalhão. O primeiro bebê a dar risada, a responder aos estímulos de gugu dadá e caretas engraçadas no berço. Também puxou mais ao fenótipo da família de mamãe: mais esguio, mesomorfo, olhos bem pretos, assim como os cabelos cacheados. Assim que começou a andar, já gostava de correr, subir em árvores, brincar de bola.
Eu, em contrapartida, sempre fui mais calado. Comecei a andar e falar depois de meu irmão, alguns meses depois. Puxei mais as características de papai: mais baixo, com mais acúmulo de gordura corporal que meu irmão, cabelos lisos e ruivos, e bastante sarda no rosto. Bastante mesmo. Mais introvertido, minhas atividades e minha diversão estavam nos livros, nos quebra-cabeças, nos videogames. Quando aprendi a andar, a minha maior aventura foi escalar a estante de livros de papai porque fiquei curioso por um tomo de capa vermelha brilhante que vi à distância. Não me recordo qual era o livro. Só me lembro do tombo.
Por essas diferenças físicas e de personalidade tão gritantes, meu irmão nunca quis ser associado em sua vida social a mim. Quando entendeu que éramos muito diferentes, e que começou a desenvolver certa popularidade na escola, solicitou que fosse alterado de turma, para outra diferente da minha. Sei disso porque ele mesmo me contou.
E não é como se eu não tivesse amigos. Eu os tinha. Mas, claramente, eram pessoas com interesses, assuntos, posturas e anseios completamente opostos aos de meu irmão e de seus amigos. E com estas pessoas, Filipe não queria ser associado. Muito menos a mim.
Nosso pai falecera quando éramos muito novos. Tínhamos apenas 7 anos. Por isso, não tenho grandes recordações de como ele reagia a nossas diferenças tão gritantes. Mas sei como mamãe agia.
Não posso dizer que mamãe preferia Filipe. Mas mamãe se conectava mais a Filipe. Antes de me evitar completamente, Filipe me provocava em casa. Me agredia, me assediava fisicamente. Eu pedia por socorro de mamãe, e ela dizia com voz de pouca autoridade "pare de incomodar seu irmão, Fil", enquanto mantinha os olhos vidrados na televisão assistindo à novela das 7. As vitórias e conquistas de Filipe sempre eram comemoradas, por mais que ele fosse um aluno pior que eu, tivesse notas piores do que as minhas, e constantemente fizesse com que nossa mãe fosse chamada para conversar na diretoria da escola. Meus projetos bem sucedidos eram recebidos com tapinhas nas costas que diziam algo muito próximo de não fez mais do que sua obrigação, já um bonequinho de palitos desenhado por Filipe era motivo de grande alegria e aplausos ininterruptos.
Por não me sentir parte dessa casa, aos 17 anos fui embora. Estudei muito para conseguir passar em uma instituição federal na capital do estado, para cursar Economia. Escolhi o curso por realmente gostar do assunto, mas principalmente porque era um curso que não havia em minha cidade, e eu precisaria ir embora. Tive apoio de mamãe, inclusive financeiro, mas tinha como objetivo conseguir algum emprego para o contraturno e, o quanto antes, desenvolver certa independência financeira de minha família. No terceiro ano de faculdade, consegui efetivação de um estágio, e com esse dinheiro, consegui manter, sem necessidade de ajuda, uma vida sem luxos, com diversas privações, mas sem a menor necessidade de depósitos mensais de mamãe. Desde o terceiro ano de faculdade, não pisava na casa em que cresci.
Filipe ficou em nossa cidade. Cursou Administração, e desde os 18 trabalhava na imobiliária da família com mamãe. Desde muito cedo, era óbvio que seria ele quem tocaria os negócios de nossos pais, que jamais seriam confiados a mim. Pouco soube dele desde que fui embora. Apenas que se tornara um chefe tão autoritário quanto mamãe, e que consumia grande parte do dinheiro que conquistava em excessos com bebidas e festas, que se iniciavam nas quartas-feiras e iam até domingo. Soube disso a partir de alguns amigos que ficaram em nossa cidade, e que me contavam espontaneamente. Eu nunca perguntei para saber.
Raramente pensava neles. Desde o dia que me emancipei completamente dos laços financeiros que nos conectavam, não sentia a necessidade de pensar neles, nem com saudades, nem com rancor. Não esperava nenhum contato deles também. Nem no dia que compartilhávamos, Filipe lembrava em me dizer algo. Eu também não sentia necessidade de dizer algo a ele. Até o dia que sonhei com ele. 7 anos sem vê-lo, e o vi em um sonho.
Então eu soube. Soube que teria ir até a casa de mamãe.
Ainda estavam recuperando o carro do fundo do lago. Ele perdeu o controle, voltando de uma das festas que sempre fazia.
Mamãe me recebeu com um abraço frio e rápido, haviam outros familiares na casa que já nem mais me reconheciam. Esse rapaz ruivo, gordo e de barba mediana.
Fui até o móvel próximo da escada, o mesmo desde minha infância. Muitas fotos de mamãe e papai. Nenhuma minha. Apenas uma de Filipe, que demorei para reconhecer. Algo estava diferente. Havia algo de errado no retrato de Filipe.
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