Já estava claro para ele. Era o que ele queria acreditar. Depois de algumas garrafas de gim, alguns discos do Cartola, algumas ligações que caíram na caixa postal. Tudo já estava ficando mais claro. Mas, só pra confirmar, ele levantou do chão - em meio as fotos rasgadas, os lençóis sujos de sangue, catarro, suor e lágrimas, e as garrafas vazias - e, tateando as paredes pra não cair de bebedeira e desnutrição, decidiu voltar até o quarto pra encontrar, de novo, os armários dela vazios.
Mas agora, já estava claro. Depois de chorar a partida sem aviso prévio, os cômodos ecoando solidão, as buscas sem sucesso, ele já começara a entender. Que talvez tivesse ficado relapso demais quanto às necessidades dela. Que quando os beijos matutinos se tornaram apenas sorrisos frios, havia algo diferente. Que quando eles se tornaram, assim como Joel e Clementine, apenas um casal entediado na mesa de jantar, a antiga sinergia já não mais vibrava da mesma maneira. Que quando, ao invés de as frontes se tocarem na cama ao dormir, apenas as costas frias se encostavam acidentalmente, ela talvez tivesse algo a dizer, que ele não se dera ao trabalho de ouvir.
Ele se questiona, porém, qual foi o momento que deixou de amá-la. Se deixou de amá-la. Porque ele sabe, sim, que o que faltou ali foi alimentar o amor. Ela sempre deixou claro o medo de perdê-lo. O medo de perdê-lo para o mundo. Para os afazeres, as responsabilidades, o trabalho, as oportunidades. De perdê-lo para algo que era realmente necessário, mas que não sobrasse tempo para olhar aos olhos dela. E no começo de tudo, quando a presença dela fazia explodir-lhe o peito, ele apenas a puxava para os braços e dizia lentamente para ela, ao pé do ouvido, que isso jamais aconteceria. Disso, ele tinha certeza, há alguns anos atrás.
Quando, então, deixou de amá-la? Será que deixou de amá-la? Por quê, então, sente tanto a falta dela agora que se foi? Os questionamentos corroíam mais do que o álcool corroeu seu esôfago nas últimas semanas, quando trancou-se em casa após muito andar pelas ruas à procura dela. Deu desculpas no trabalho, dispensou a família e os amigos, e ficou só. Só para se questionar. Para tentar entender o seu amor, e saber que, sim, que ele ainda está ali, que ele ainda existe. Mas que ele não soube demonstrar. Cometendo o erro estúpido da comodidade, ele acreditou que o amor dele já era tão claro, e que ela jamais o deixaria por sentir falta dos abraços apertados e das juras ao pé do ouvido, que ele parou de sentir necessidade de demonstrar. De estar presente. De ouvir como foi o dia dela. Das aulas que ela deu, dos alunos que deram problema, dos passeios com as crianças, do garotinho que sempre fugia e ela tinha que correr atrás para buscá-lo antes que ele caísse no lago. E também parou de dividir. Só dividiam o banal. As contas, as notícias ruins do jornal, o trânsito, a comida fria dos restaurantes de entrega. Mas ele sabe que, apesar da comodidade do sentimento, ele ainda estava lá, dormindo confortável.
Até o dia que, sem aviso prévio, ela foi embora. Sem deixar uma carta. Uma mensagem na porta da geladeira. Trocando o número do telefone. Saindo do emprego. Não avisando aos familiares - ou pedindo encarecidamente para que eles não o informassem. Levando todos os seus pertences. Nesse dia, e nos dias que se seguiram, ele a procurou. Andou por todas as ruas. Pelos restaurantes que ela gostava de comer. Pelas casas de parentes e amigos. Ele procurou. Ele sentou. Ele se questionou. Ele tomou todas as garrafas de gim que pôde comprar. Gim, que ele odiava, mas era a bebida favorita dela. Ele quis se embebedar com o sabor dos lábios dela. E, com muito custo, entendeu que lidar com a ausência dela a partir de agora seria apenas reflexo de todos os vazios que ela sentiu quando o seu toque se tornou frio e automático. Assim, procurando mais uma garrafa de gim, ele colocou novamente o disco do Cartola pra tocar, e cantarolou: "Se bom pra você for, pode partir amor, e que sejas feliz".
Nenhum comentário:
Postar um comentário