Quando tocar o último fado, meu amor, eu vou embora. A melodia triste vai ter gosto de adeus quando a guitarra portuguesa entoar o seu último acorde. A canção parece ser mais longa do que eu esperava, mais curta do que você queria, mas assim que o tempo dela chegar, antes ou depois do que desejavam nossos corações sangrando, eu vou embora.
Tamborilo os dedos na mesa ao ritmo das notas doloridas e sinto pedaços de madeira me arrancando a ponta dos dedos com a mesma lentidão que os teus soluços atravessam a sala cheia de móveis e vazia de nós dois. A chuva lá fora arrebenta as pedras na rua e dilaceram os transeuntes, com a mesma intensidade que a tua ansiedade do que virá depois de hoje corrompe os teus pensamentos, com a mesma potência que o teu medo do que vai acontecer quando a canção acabar.
Quando tocar o último fado, querida, eu vou embora. E cada história que vivemos ficará pelos cantos da casa que passará a ficar sozinha. Hoje, daqui, sairemos os dois, deixando os móveis que não são nossos, as toalhas que não queremos, os sonhos que não concretizamos, as mágoas que não couberam nas malas, as meias que perderam um pé. Ficam aqui os fantasmas de quem nós fomos, em todos os períodos do que vivemos.
Um pedaço daqueles jovens amantes, que fugiram de tudo e de todos para viver um amor que ninguém aceitou. Os espíritos daqueles planos de conquistar o mundo, e trazer o verão pra sala e fazer daqui o paraíso, a nossa praia, o nosso Caribe particular. Os novos moradores ouvirão nossos gemidos altos da primeira vez que transamos no sofá da sala com a janela aberta, sentindo o medo e a excitação de que talvez os vizinhos nos vissem lá da rua.
Residirão também os resquícios das primeiras tristezas, das primeiras lágrimas, das discussões acaloradas sobre as contas a pagar, sobre os olhares para outros corpos, sobre o que não concordamos em fazer no jantar, e sobre as verdades que desconhecíamos um sobre o outro e nos foram reveladas na convivência desse lar. Nos dias de tempestade, os novos moradores desta casa ouvirão meus socos na parede, e o som das louças que você quebrou arremessando pela cozinha.
Espero, de coração, que os novos moradores desta casa não exorcizem os fantasmas que deixaremos para trás, e que sejam amantes de perfumes e de música portuguesa, pois o perfume das tuas flores exalará para sempre através das janelas da sala, o cheiro da minha pele vai ficar pelas paredes, e a última nota deste fado vai ecoar para sempre pelos cômodos do lar que abrigou a vida conjunta que acaba de acabar.
Muito bom!!!
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