Eu devia ter feito um café ruim pra ver se você deixa de gostar de mim.
Mas, ao invés disso, escolhi os grãos mais nobres, moa-los devagar, transformar a água em névoa quente e servi-lo com as mãos trêmulas de uma anfitriã desesperada para agradar seu convidado mais ilustre. Eu queria que você ficasse. E então você ficou.
O primeiro gole foi um brinde ao que eu achei que era amor. O segundo, um voto de confiança. O terceiro, um veneno suave demais para perceber o gosto amargo logo de início. Você sorriu e me disse que o café era perfeito. Mas, com o tempo, passou a dizer que estava forte demais, ou ralo demais, ou quente demais, ou frio demais. E, sem que eu percebesse, me fiz refém da tentativa de acertar o ponto ideal que jamais chegava.
Eu troquei a xícara pelo cálice, a colher pela balança, mas o problema nunca foi o café. Era eu. Você me fazia acreditar que a culpa era minha, que eu não sabia medir, que minha mão pesava errado, que meu senso de paladar era falho.
E assim, dia após dia, eu fui me moldando ao gosto que você dizia ter, torcendo para um dia acertar. Mas toda vez que eu chegava perto, você mudava a receita. Eu, obediente e cega, apenas ajustava as proporções, como uma aprendiz submissa diante do mestre de um ritual alquímico cujo segredo só ele conhecia.
Os dias foram se transformando em noites insones, e eu comecei a duvidar dos meus próprios sentidos. Será que o café de ontem realmente estava amargo, ou foi só impressão? Será que o sorriso que você me deu era verdadeiro ou só mais um reflexo distorcido da xícara manchada? Comecei a acreditar que não sabia mais fazer café, que talvez nunca soube. Que minha língua sempre foi insensível ao sabor e meu instinto, um equívoco.
Você dizia que me amava, mas com um gosto levemente ácido, como um resquício de café requentado. Você me fazia acreditar que sem você eu nunca mais acertaria uma receita, que meus grãos seriam sempre ruins, que minha água jamais ferveria na temperatura certa. E eu aceitei. Aceitei porque era mais fácil do que admitir que eu estava presa em uma cafeteria onde o único cliente era você, e o único prato no cardápio era o meu sofrimento.
Até o dia em que parei de fazer café.
E o silêncio que veio depois foi ensurdecedor. Você me olhou com uma surpresa teatral, como se minha ausência de ação fosse um crime maior do que todas as falhas que você apontava antes. Sua voz tremeu, seu rosto se crispou. Você me acusou de estar mudada, fria, distante. Mas, pela primeira vez, eu soube que o problema nunca esteve na bebida, e sim na sua sede insaciável de controle.
Eu devia ter feito um café ruim pra ver se você deixa de gostar de mim.
Mas agora eu sei que, mesmo que eu servisse veneno, você teria me feito acreditar que fui eu quem bebeu.
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