Qual é a cor dos teus olhos, pequena?
Houveram vazios e espaços de tempo e quartos vazios e silêncios. Diversos silêncios. Daqueles que ocupam os espaços - de tempo e dos quartos - e que machucam os vazios. Houveram silêncios, pequena, eu sei. Abandonei as responsabilidades, e as palavras compartilhadas, e as páginas rabiscadas dos nossos projetos de seguir em frente, e te deixei.
Sem explicações prévias, sem uma carta de despedida, sem um adeus formal. Só levantei, em silêncio, na escuridão dos nossos corredores, e, pé ante pé, destranquei suavemente a porta e saí.
Quando volto então, a casa, e não te encontro, pequena, eu me pergunto: Se eu te ver andando na rua, sozinha, vindo em minha direção, será que eu te reconheço ainda? Ou será que trombaremos, nos olharemos, e não saberemos quem somos mais? Hello, stranger.
Pois, desde que abandonei o nosso lar, percorri diversos caminhos, pequena.
Atravessei desertos, deitei em clareiras, adormeci em asfaltos. Encontrei outros portos, outros corpos. Pequenas, pequenos, grandes, diversos. Fui muitos em pouco tempo, e encontrei pouco de mim em muito tempo. Desaprendi a minha verdade ao ser múltiplo, e por ser múltiplo, perdi os meus cordões.
Muito me surpreendi com os passos que dei e como cheguei até aqui, pequena. Sem saber, girei o mundo e voltei à porta da casa. Apesar de estar diferente, e aparentemente abandonada, sei que é, aqui, o lugar que um dia chamei de lar.
Há quanto tempo já, pequena? Nesses meses de caminhada, perdi a noção de qual foi a última vez que acariciei sua têmpora até que pegasse no sono. Há alguns séculos, eu não me incomodo com seus pés gelados encostando em minhas pernas, por debaixo das cobertas. Cento e poucos anos, e eu ainda lembro do toque. Mas já não lembro do rosto, pequena.
Sei que é triste, que parece que me esforcei durante todo este tempo em me esquecer de ti. Até cheguei a acreditar que sim. Que me afastei para esquecer. Mas, hoje sei, que a verdade não se faz dessa forma.
Se um dia levantei, sorrateiro, e parti, foi para não te perder, pequena. Quando senti, ao acordar naquele dia, que já não eras mais a mesma, eu não quis te perder. O seu despertar já não era mais doce. O beijo quente com sabor de café, substituído por um sorriso frio e distante, por cima dos ombros. Te senti esvair, e sem forças para te puxar de volta, eu não quis te perder.
Saí, então, para pintar pelos lugares o amor que um dia eu via, e que se perdeu dentro do oceano sem vida que se tornaram os seus olhos. Desenhei nas areias do deserto teu nome, e o primeiro dia que te vi. Escrevi nos muros cinzas dos prédios abandonados os nossos dias, os nossos sorrisos, e as nossas alegrias. Relembrei, e como um bardo, cantei aos andarilhos e aos transeuntes os nossos planos e as nossas viagens e os nossos castelos de cartas nunca construídos e nunca realizados. Me ative às nossas lembranças, que me mantinham aceso e vivo, e guardava dentro de mim aquela que um dia foi minha. Sem guardar seu rosto, ou seu corpo, que sempre foi o que menos me valia. Me valiam muito mais os seus valores, os seus toques, os seus calores.
Volto, então, como empurrado pelo universo, para o ponto em que tudo isto começou. A casa, visivelmente, já não é mais a mesma. Você, talvez, também não seja mais. Talvez, se eu te encontrar na rua, nem te reconheça. Qual é mesmo a cor dos seus olhos, pequena? A cor da sua pele, ou do seu cabelo? Talvez, você já tenha ido. Já nem more mais na mesma casa.
Deixarei, então, este recado embaixo da porta. Deixaria embaixo do tapete, ou no vaso de plantas, que era onde escondíamos a chave quando um saía de casa e o outro estava para chegar. Mas, não há mais vaso. Não há mais planta. Não há mais. Talvez, você encontre. Talvez, você não veja.
Voltarei a andar, e recontar e reescrever e reviver você em todos os cantos do mundo, e em todos os pedaços de mim. Um dia, com certeza, serei trazido de volta. Aí então, você possa estar aqui, com sabor de café quente nos lábios, e com os olhos brilhantes, que me façam nunca mais esquecer suas cores.
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