sexta-feira, 23 de abril de 2010

Aquelas Impressões

Era como aquela moça fútil pela manhã. Ela, secretária, recebia os jornais para o chefe, e sem nem se importar com as manchetes bombásticas que o jornal estampava, percorreu as folhas ansiosa para encontrar uma das únicas coisas que realmente a interessavam naquelas folhas ásperas e sem cor: o horóscopo. Era do signo de sagitário, mas também lia o de libra, pois quem interessava a ela, era deste signo. Ela realmente achava necessário saber o que se passava na vida de seu amado.
Então, aquela voz, aquela voz que estava ao fundo e desponta, furiosa e ao mesmo tempo melancólica, a frente das atenções e lê uma carta, em voz alta, como se tudo que era dito ali, não se destinasse apenas a quem realmente interessava, mas a todos nós. E havia aquele sentimento de dor, de saudade. Cazuza, naquele momento em que o dia estava nascendo feliz. E toda aquela saudade. E aí, o silêncio.
O pássaro do homem ainda desafinava nas mesmas notas da música, ele se esforçava de todas as formas para que a ave aprendesse, mas era complicado. Aquele seria, apesar de falhar na domesticação vocal de seu pássaro, um novo dia, um dia diferente. Ele começaria um novo emprego. Era visível a excitação misturada com nervosismo, toda aquela vontade de parecer até melhor do que era, de causar a melhor impressão possível. Daquilo dependia a sua estadia naquela cidade estranha, daquela postura dependia seu futuro e seu subsistência. E ele conseguiria. Ele era ótimo, formado em administração, com curso médio em técnico contábil, e ainda, com um curso de datilografia a distância.
Em algum outro lugar, um homem começava sua manhã desenhando. Sempre fora bom em desenho, mas não podia viver de um sonho, era preciso colocar os pés no chão, e com os pés no chão daquele pequeno quarto de pensão, ele terminou de se arrumar para começar um novo emprego, numa repartição.
Jamais pensaram os dois, que aquele dia seria um dia que traria tantas mudanças na vida dos dois.
No começo, apenas olhares estranhos, cumprimentos educados, e aqueles assuntos necessários a evolução do trabalho que eles, afinal, elaboravam em conjunto. E também, um café, de vez em quando. Único momento de leve descontração.
Como em vários tipos de relações que se iniciam obliquamente, o motivo que começou a uní-los foi algo totalmente inesperado: cinema. Um gosto cinematográfico em comum, atores, diretores, todos aqueles conhecimentos os fizeram perceber um no outro algo que poderia começar a preencher suas solidões.
E a partir daí, era impossível saber o que se passava na cabeça de ambos. Havia uma falta, um sentimento que era difícil de expôr. Mas havia, ele estava ali, presente, marcando como ferro a alma daqueles homens tão sozinhos.
Certa vez, pelo falecimento da mãe de um deles, passaram uma semana distantes. Uma semana sem nenhum contato. Aquele que continuou trabalhando sentia como se o tempo não passasse, aquele vazio era impossível de preencher.
E quando voltou, ah, aquela ligação, aquela voz, e aquele chamado: Vem, vem aqui. E aquele abraço. Um misto de fúria, de paixão, de saudade, de tristeza, de vazio. De amor, verdadeiro amor.
A partir daí, dessa demonstração quieta e real de um sentimento que já fazia parte de todo o ser, não importa o que se passa na cabeça das pessoas: dois amigos, dois homens carentes que sentiam falta de alguém, dois amantes, dois veados promíscuos. Não importava o emprego, não importava a repartição,não importavam os olhares na janela. O que realmente importava ali, naquele momento, foi que existia algo a que realmente se apegar, a que realmente cuidar, se importar: que havia alguém, que acima de qualquer banalidade, preenchia todo e qualquer vazio, apenas por existir. E assim, aqueles dois seguiriam, sem mais precisar de ninguém, pois eles tinham um ao outro, e assim que teria que ser.

Acho que é quase impossível descrever com palavras a sensação de assistir a peça Aqueles Dois, baseado no conto homôniomo de Caio Fernando Abreu. Todos os momentos, todos as sensações, toda a ansiedade, aquilo tudo que está em cena tão a flor da pele. Tentei apenas expressar o sentimento final dos dois personagens, o que, penso eu, eles realmente sentiam. Nâo é tesão, não é amizade, não é carinho. É algo que transcende isso tudo, e você consegue saber se você realmente sente. Ou, se você assiste a peça Aqueles Dois, da Companhia Luna Lunera.
Serei eternamente grato por tão maravilhosa experiência.
Para mais informações, @cialunalunera Site Oficial Cia. Luna Lunera.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

The Point of No Return; Ou tudo aquilo que não tem razão de ser

Aquele olhar. Uma pena que sou desprovido de compaixão. Mas ainda assim, eu jamais esqueceria aquele olhar.
Aqueles olhos que pediam por carinho, que pediam por uma chance, que demonstravam toda a vontade de tocar minha pele de novo, e de, por um curto espaço de tempo, poder ter a sensação de que tudo em mim, pertencia a ele.
Chegava a ser incômodo, constrangedor, manter aquela conversa enquanto os olhos analisavam cada expressão de meu rosto, cada movimento do meu corpo, cada vez que meus lábios se abriam para proferir uma palavra. Eu não me sentia bem em ser desejado.
É interessante dizer isso, pois normalmente nos sentimos bem em ver que alguém nós olha com desejo, com interesse. Nos sentimos passíveis de sermos amados, de sermos descobertos por alguém, e assim, nos dando uma chance de amar e descobrir outro alguém. Aí reside a diferença.
Tudo que há nestes olhos, e no corpo a qual ele faz parte, e na pele que cobre esse corpo, e principalmente, nos jeitos, trejeitos, manias e confusões que fazem parte desta pessoa, eu conheço. Conheço mais do que desejaria, conheço mais do que deveria. E nada nisso me atrai. Nada nisso me faz pensar em voltar e viver algo novamente, nem que seja um abraço prolongado e um beijo no rosto. Não existe ligação sentimental entre estes dois corpos. Não adianta tentar.
Aquele olhar. E não é por ser apenas desprovido de compaixão que eu não o retribuo com algum tipo de carinho, e sim com repulsa. É também por respeitar seu sentimento. Sim, respeitá-lo. Afinal de contas, seria muito fácil eu usar deste amor para satisfazer todos os meus desejos carnais, ir contra o que eu sinto e apenas usar teu corpo como poderia usar o de qualquer outra pessoa, mas prefiro agir com frieza e desprezo para que possas, enfim, destinar estes olhos para outro alguém, pois, por mais fundo que você tente olhar, mesmo dentro dos meus olhos, nos confins de minha alma, você poderá encontrar de tudo, mas nunca um lugar onde você possa repousar o seu amor.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Le Temps Perdu; E todos os resultados de uma escolha errada

Havia tanto, tanto tempo. Pra que mexer nisso de novo? Sempre ouviu dizer que, quanto mais você mexe, mais fede, e ainda, costumava dizer isso para todas as pessoas que pensavam em voltar a tentar algo que já havia sido encerrado. Não importa a forma do fim, certa, errada, com discussões, com paz, com distanciamento. Não importa. Se acabou, era pra ser. E não me venha com essa filosofia de música do Raimundos, dizendo que "se ainda não deu certo é porque não chegou ao fim". Seja real: Não chegou ao fim porque não deu certo. E por mais que seja fácil falar, para ele era óbvio que era muito difícil de cumprir. Chegou, uma vez, a quase discutir com um amigo, por este motivo. Era bom com palavras. Péssimo com atitudes.
Então, pra que? Por que atendeu àquela ligação, por que aceitou a reaproximação? Por que foi encontrá-lo?
Claro, havia a curiosidade. Nunca havia olhado nos olhos daquele que o fez perder a cabeça, que o fez entregar o coração, que o fez quase ficar calvo de saudades, tristeza, preocupação, e decpeção. Nunca havia visto realmente quem ele era. Apenas sabia que o outro existia, em algum lugar. Uma cidade próxima. Tão próximo, porém tão distante. Não poderia perder a oportunidade.
Saiu em disparada, com o coração na boca, temendo perder o primeiro ônibus, a primeira carona, o primeiro pé-de-vento que o levasse de forma mais rápida possível até o lugar onde se veriam. Pela primeira vez, depois de tantos anos.
Havia sido uma história muito rápida, a dos dois, porém intensa. Uma amizade em comum, na verdade, uma paixão em comum, que acabou ficando em segundo plano quando ambos descobriram que tinham tanto em comum, e que um supria as faltas, vontades e desejos do outro, mesmo distantes. Eles sabiam que um era o melhor para o outro. E essa história tão intensa, durou apenas duas semanas, e nada mais.
Ele não se lembrava mais que havia um sentimento, até ouvir a voz do outro do lado do telefone, quase 3 anos depois, e dizer que, desta vez, ele estaria em sua cidade, com toda a certeza que poderia existir, e que eles iriam se ver. Ao telefone, tentou manter o controle na voz, enquanto sorria sem parar, durante todo o dia.
E então, após tomar um transporte público totalmente cheio, ele desceu no lugar certo. Chegando em frente ao local combinado, ligou para o outro, avisando que estava a frente, esperando-o. Então, ele veio. E ali estava, a sua frente, sendo aquele que via em fotos, vídeos, mas com uma pequena diferença: tão mais bonito! Mas, como toda a história que deveria ter ficado no passado, aqui não seria diferente.
Ouve um primeiro contato, um primeiro olhar, e toda aquela chama que queimou entre os dois. Aquela vontade de abraçar, de dizer que nunca esqueceu. Mas, as palavras advindas do encontro mostraram que a vida de ambos seguiu caminhos que, agora, não condiziam mais com as vontades, os anseios. Com as lembranças daquele quase casal. E então, todas as boas lembranças foram substituídas por um encontro, frustrado.
Ele voltou para sua casa, e assim que fechou a porta, forçou sua cabeça contra a parede por várias vezes. Mas nenhuma dor física o faria esquecer a dor que sentia, de ter destruído toda uma história por algo que, era óbvio, daria errado.
O que passou, passou, e não tem como voltar. É possível reconstruir uma janela, mas sempre serão vistas as rachaduras. Ou você troca o vidro, ou apenas guarda os cacos, como uma bela lembrança do que olhou através deles.

sábado, 10 de abril de 2010

Retornando ao Quarto Cinza; Ou o que reside dentro de cada um de nós

Releitura do meu texto O Quarto Cinza; Ou qualquer outro lugar dentro de cada um de nós; escrito por Ricardo Michelli e postado em seu fotolog no dia 04/04/2010. Releitura permitida pelo autor original, e completamente aprovada. Condiz muito com os meus atuais pensamentos sobre mim, sobre nós, sobre o todo. E sobre todos os mundos. Ou simplesmente sobre o mundo que levamos em nós mesmos.

Eu nunca tive medo das pessoas, sempre temi o demônio que existe dentro de cada uma delas. Por mais parecido que um dia seja com o outro, nunca faremos as coisas da mesma forma.

Quando eu quis te conhecer a idéia foi de não pensar como seria e simplesmente apostar todas as fichas na mesa.
Não esperava que de repente muita coisa ganhasse vida novamente e me trouxesse a necessidade de ir para o inferno e tratar de negócios.

Então me perguntará: que negócios se trata no inferno?
Simples: em relação ao demônio que guardamos dentro de nós, existe uma espécie de manual da boa conduta que se resume na seguinte expressão "Deus cria e o Diabo molda aos seus olhos". Então eu fui e rapidamente retornei.

A sensação de voltar do inferno?
No mínimo intrigante. eles de fato sabem como fazer negociatas por lá, acredite, conseguir um visto de permanência neste plano não é tão complicado assim, o único requisito é que você tenha coragem, crença nos seus próprios esforços e cumpra cada uma das tarefas que assumir pelo caminho traçado.

Enquanto eu fui, negociei, me desfoquei e quase te perdi, simplesmente criei uma redoma onde você e a melhor parte de mim pudessem ficar em segurança, sem que nada e nem ninguém contaminasse o que existia ali.

Não me esqueci em momento algum de que o tempo passa, e que o mundo jamais espera, semplesmente abandona quem fica parado, para trás. A inércia infelizmente não condiz com a existência.

Ao olhar para o lado eu vejo que nem sempre as coisas são como se planeja e quem lhe pede a provação não sabe ao menos a direção.

Nunca sentiremos novamente o que sentimos um pelo outro, mesmo que busquemos cicatrizar os ferimentos ou então viver em uma redoma para simplesmente não ganhar uma nova cicatriz e cultivar algo já existente.

Pode ser quem sabe a solução de quem já se declara o perdedor para que um jogo onde não deveria sair um vencedor.

Ao som de tal ciranda é preciso pensar naquilo que te prende, no desatar das correntes, o quitar das dívidas e realizar negociatas com as pendências, antes que tudo o que você se lembra e preserva se perca no fogo e queime, no fogo que tudo queima, o fogo do tal tempo, que apaga, que cicatriza, e que, principalmente, esquece, faz e ajuda esquecer.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Boo'ya Moon, País das Maravilhas, Territórios; Ou qualquer outro lugar no avesso do mundo.

E mais uma vez, ele estava em frente ao espelho. Mesmo com todo o meu medo dessa superfície límpida, que reflete tudo que se coloca em sua frente, ele estava ali, sozinho no recinto, sozinho em sua casa, olhando bem para os olhos da pessoa a sua frente. Olhando dentro de seus olhos.
Seriam mesmo seus próprios olhos? Ele acreditava que não. E sabia que não estava ficando louco, por mais que os outros digam que as suas palavras, suas teorias, não façam o menor sentido. Ele sabia que ali, do outro lado, residia algo. Residia alguém. Existia um outro lado.
Desde muito novo ele sentia algo estranho vindo não só de espelhos, mas de qualquer outro objeto que possa refletir sua imagem, como se estivesse sendo profundamente observado, como uma janela que levava para o desconhecido. Um desconhecido que, ao mesmo tempo que ele temia, ele admirava, ele desejava, ele gostaria de alcançar. Mas não sabia como.
Certa vez, ele teve uma visão desse outro lado, tão clara, tão pura, tão filha-da-putamente real, que ele realmente acreditou ter atravessado.

Ele tinha 15 anos, um adolescente cheio de revoltas, incertezas, e principalmente, cheio de medos. Indeciso sobre tudo, sem saber que rumo tomar, e sem saber como deixou de ser o garoto mais adorado da escola em que estudava para um quase delinquente juvenil sem rumo e sem limites. Um jovem que tinha pavor de ser acima do peso, tinha medo da reação dos demais a sua orientação sexual, e que se escondia em uma máscara de raiva, rancor e revolta para guardar para si o garoto amedrontado, carente, e necessitando de muita ajuda.
Estava sozinho em casa, e sentia aquela onda de horror chegando cada vez mais perto. Por várias vezes, ele a sentiu próxima, como um fardo, um peso caindo sobre suas costas, e todas aquelas vozes em sua cabeça, apontando todos os seus erros, e todos os erros que cometia tentando consertar os erros anteriores. No fundo, era como se ele ouvisse vozes tenebrosas cantando em seu ouvido, como se estivesse ouvindo Attack of the Killerbirds de Emilie Simon, aquele som de suspense e medo, e ele não podia fazer nada para impedir. Tentava gritar, pedir para pararem, mas sua voz não saía. Ele queria fazer parar, ele não aguentava mais. Ele se jogou no chão, sentou-se, encostou suas costas na cama, abraçou suas pernas e colocou sua cabeça entre os joelhos, e não vendo diferença nenhuma, ele começou a bater na sua própria cabeça, que agora, além de ter todos aqueles sons dentro dela, ainda sentia um início de enxaqueca, que só tenderia a piorar com os ataques que ele causava a si mesmo. Então, uma luz passou perante seus olhos, e, como que entrando num estado de catatonia, ele ergueu sua cabeça rapidamente, olhando fixamente, com os olhos muito abertos, para a frente. Mas o que ele via não era a grande parede de madeira que dividia seu quarto com o quarto ao lado. Não, ele via um lugar. Quase como um deserto, não fosse pela grande quantidade de água que tocava o litoral daquele lugar. Um deserto de areia preta, e a água, de um verde, parecendo água suja, mas ele sabia, ele sentia, que aquela era a mais pura água que já teria visto em sua vida. E percebeu também, que não conseguia se mover. E ali, ali naquele lugar, ele percebeu então, que não estava sozinho. Percebeu-se a uma distância considerável da praia, e vindo em sua direção, várias pessoas, pessoas que ele poderia ter certeza que conhecia, vindo em sua direção. E todas falavam, ao mesmo tempo, davam conselhos, criticavam, repudiavam e amavam. As vozes. Uivando como lobos, oh, lobos. Todas as vozes pertenciam ao outro lado. Mas tudo acabou muito rápido. Quando acordou, ele se viu com uma camisola branca, com fechos de velcro, e num lugar desconhecido, um quarto tão branco quanto a camisola que utilizava. A única certeza que ele tinha, era que tinha voltado ao seu lado da realidade. Entraram pessoas, também de branco, em seu quarto, e perguntaram a ele se estava tudo bem. Duas mulheres, e um homem. O homem, com cabelos grisalhos, disse a ele que ele tinha entrado em estado de choque causado por um excesso de estresse e outras causas psicofisiológicas. Ele abriu a boca para dizer que não, mas achou que seria pior. Se dissesse o que realmente aconteceu, temia ter que ficar mais tempo naquele lugar, que agora ele sabia muito bem aonde era. E não era nada bom, ainda pior quando comparado ao lugar aonde esteve.

Ele estava perante ao espelho, e depois daquela sua experiência, ele nunca mais teve nenhuma experiência do outro lado. Até poucos dias antes desse momento em frente ao espelho.
Foi numa manhã, uma manhã qualquer, sendo acordado para ir trabalhar, e naturalmente, levantando de mau humor, como qualquer outra manhã ordinária. Demorou alguns minutos para se levantar da cama, então seu novamente foi altamente (e irritamente) anunciada, e então, colocou seus pés no chão. Sempre o pé esquerdo primeiro, apenas pra ir contra a grande maioria que dizia ter que acordar de pé direito. Ele não precisava daquilo, obrigado.
Foi ao banheiro, que ficava ao lado de seu quarto, fez suas necessidades fisiológicas, e olhou para sua própria imagem ao espelho. Barba por fazer, cabelo desgrenhado, olhos pesados e vermelhos, nariz irritado. Ele nunca namoraria consigo mesmo naquele estado, nunca na vida. Pensando isso, abriu um sorriso amarelo para si mesmo. Mas sua imagem não respondeu ao sorriso. Permaneceu séria, impassível, e encrespou a sobrancelha. Seguido disso, veio uma breve luz, e então, tudo voltou ao normal. Ele lavou o rosto por muitas vezes, assustado, respirando rapidamente, sentindo lágrimas nos olhos, e todo seu corpo tremendo. Pela segunda vez, em 4 anos, ele teve uma visão e uma prova do outro lado. E não sabia até que ponto isso era bom ou ruim.
E apesar de todo seu medo, lá estava ele, novamente. De uma forma que ele não sabia explicar, ele tinha certeza que ele precisava tentar, ele queria tentar um contato, uma imagem, uma porta de passagem. Queria mergulhar de cabeça na toca do coelho. Mas não sabia como, e esperava que aquele seu eu que não achou graça da sua piada sobre o auto-namoro, estivesse disposta a ajudá-lo, ou quem sabe, disposta a se tornar um único ser com ele. Não importava a maneira, ele queria se entregar. Pois, se aquele era o avesso do mundo, ou uma outra forma de viver, ele estava disposto a tentar, a tomar daquela água tão verde, que ele sabia, tem o poder de curar de toda a dor, e viver com aquelas pessoas, aquelas vozes, que mesmo tão atormentadoras, tão duras, faziam o inverso do mundo em que ele vivia.
Aquelas criaturas avesso não criticavam as escuras, não discutiam aos sussurros, não condenavam pelas costas, não atormentavam a distância. Elas estavam ali, prontas para enfrentar o mundo. Prontos para enfrentar a ele, e era isso que ele sempre procurou. Elas eram, acima de tudo, reais e realistas.
Chegando então, a realidade e ao realismo de cada um deles, chega-se ao motivo de ele querer tanto atravessar. Não importava se ele fosse ficar passando anos encarando aquela água sem motivo algum, ou se iria se tornar apenas mais uma voz na cabeça de alguém, o que importava era, que tudo era verdadeiro. Não, não. Tudo é construído sobre verdades.
O que basta saber é, quem é o avesso, e quem é o direito. Quem é o certo, quem é o real. Quem é o original, e quem é a cópia mal feita.
Ele já havia feito sua escolha. Agora, era só conquistar.


Nota do Autor: Tanto o título, quanto o texto em si, faz menção a 3 grandes obras literárias: Love - A História de Lisey, de Stephen King; O Talismã, de Stephen King e Peter Straub; Alice no País das Maravilhas de Lewis Caroll.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Memórias do Indizível V: Que Assim Seja

Esta é a última Memória do Indizível. O último texto do blog que eu divido/dividia com Janaina Lellis. Quem sabe um dia eu volte até lá. Quem sabe um dia nós voltaremos. Por enquanto, são só memórias. De coisas, que nunca foram ditas. Que assim seja.

No silêncio de uma noite sem estrelas, eu me pego pensando em nada. Absolutamente nada. Se formou um silêncio em minha cabeça, que eu nunca soube o que é. Um vazio inexplicável, justo eu, que sempre sou tão ocupado, tão preocupado, tão atarefado. Trabalhar, a minha vida se resume a isso. Qualquer relação afetiva ou social, eu deixei pra lá. Sou um rapaz ainda, jovem, tenho que fazer a minha vida antes de pensar nos outros. Primeiro eu, primeiro eu. Sempre.
E de repente, nada. Absolutamente nada. Todos os sons da cidade pararam, as luzes se apagaram, e a minha cabeça parou de pensar no que eu pensava.
Eu já nem me lembro mais. Uma reunião a ser presidida? Um projeto a ser posto em prática? Um relatório a ser concluído? Contas a serem pagas? Fornecedores a serem contatados? Eu nem me lembro mais, o que é que está havendo? Eu fecho os olhos, e agora tudo que vejo é minha vida passando.
As amizades da infância e da adolescência, as brincadeiras. Aah, era tão bom subir naquele pessegueiro... Mas na época eu tinha tempo para isso, agora não há mais tempo. E os namoricos, os primeiros casinhos e paqueras também passaram pela minha cabeça. Nossa, e o simples fato de encostarmos nossos lábios já era encantador... ERA, eu disse bem, pois nesse mundo de hoje em dia, não existe espaço para inocência.
E tudo isso é passado, eu tenho que parar com isso. Então, vou e me deito. Dormir, mesmo que seja perca de tempo, é melhor do que ficar nessa escuridão, sem energia, e relembrando coisas que não voltam mais.

Acordo, não sei quantas horas depois, é impossível saber. Sei que é dia pois a luz do sol já atravessa as persianas, mas o relógio parou de funcionar. E pelo que parece, a cidade continua adormecida. Todos os barulhos que eu sempre pude ouvir atravessando a janela e me acordando de tempos em tempos durante meu curto sono, essa noite parecem ter silenciado totalmente.
E quando me levanto, noto também que a energia ainda não voltou. Ótimo, muito bom, muito me interessa como vou trabalhar. Me lavo, me visto, rapidamente, pois tenho medo de estar atrasado, afinal de contas, não sei que horas são. Está tudo enlouquecido.
O elevador, para minha sorte, também não funciona. Descer 10 andares de escada, que alegria. Chego a portaria, não há ninguém lá. Moradores saindo para trabalhar, porteiro cuidando da movimentação, nada. Será que aconteceu algo e só eu não fiquei sabendo?
Vou até o estacionamento, e então descubro que o carro também não funciona, apenas para melhorar tudo que já está me acontecendo. Descido então sair, ir até um ponto de onibus ou encontrar um taxi, algum meio de chegar ao trabalho.
Quando chego à rua, vejo tudo parado. Sem carros nas ruas, sem mendigos nos bancos, sem cachorros nas calçadas, sem pessoas preenchendo o vazio do lugar. Sem nada. Tudo parado. Que tipo de jogo é aquele?
Então, eu sinto toda minha vida passando por mim. Será que eu morri?
Fecho os olhos, e vejo novamente o mesmo de ontem, a infância, a adolescência, todos os momentos bons que eu tive, e que eu havia esquecido... havia deixado de lado para alimentar minha ganância, pois eu vi exatamente o momento em que me perdi, e dexei de viver minha vida para viver meus desejos. E de tanto pedir para estar sozinho, para viver minha vida sem nada nem ninguém para me atrapalhar, parece que agora consegui realizar o meu desejo.
O mundo é meu, e sendo só meu, ele passa a não valer nada.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Páscoa com Sabor de Chocolate Amargo


Domingos, normalmente, são dias tediosos. E também um pouco deprimentes, com aquele clima insuportável de 'segunda-feira-está-chegando' que irrita qualquer membro do proletariado. Também, normalmente, domingos são dias onde ninguém faz nada fora do normal, apenas se descansa, faz algo mais caseiro, afinal de contas, amanhã, será outro dia (de inferno, na maioria das vezes). Porém, em algumas ocasiões especiais, existem reuniões, encontros, churrascos descontraídos (ou não), e existem também, os almoços de família.
Sim, aqueles almoços onde todo mundo se reúne, todo mundo sorri, se abraça, como se realmente mantivessem contato, sendo que a última vez que se viram e se falaram e se importaram uns com os outros, foi justamente no almoço de família anterior, que ocorreu meses atrás. Pois é, tanto carinho, afeto e dedicação ao próprio sangue.
Porém, em algumas famílias em especial, almoços de família são evitados, pois são famosos por eventos marcantes, que tornam o clima da reunião, que já não é tão leve assim, ainda mais pesado.
Tudo caminhava na normalidade. A páscoa seria comemorada, neste ano, na casa da avó, uma senhora que estava preste a chegar aos 80 anos, e que tinha mais vivacidade que seus 7 filhos juntos. Estatura baixa, pele surrada do sol que tomou por anos enquanto trabalhava na lavoura, poucos cabelos, totalmente desarrumados e pintados de castanho escuro, e com uma feição no rosto que escondia completamente sua personalidade: um rosto angelical, típica Dona Benta, mas na verdade, era geniosa, raivosa, vingativa.
Chegaram ele e sua tia na casa, já haviam pessoas lá. Gabriel, bom, já sabia como seria a recepção dos familiares, agora que todos na casa sabiam sobre sua decisão universitária, e orientação sexual. Numa família tradicional italiana, ele sabia que todos os olhares caíriam para ele, sua tão odiada franja comprida, e seu estilo visto aos olhos de todos como estranho e espalhafatoso, e agora, ex-universitário, e gay.
Chegando lá, ele e sua tia Alair, já estavam presentes dois tios, uma tia, três primos, dois deles com suas respectivas (insossas) esposas, uma prima com o marido e duas filhas, e claro, a amada, idolatrada (não salve, não salve) anfitriã.
E, quase como num deja vu perfeitamente estruturado, assim que ele cruzou o portão, todos os olhos caíram sobre ele. Por poucos segundos, um silêncio constrangedor, e olhares que percorriam desde seu tênis All Star xadrez até o último fio de seu cabelo organizadamente bagunçado e cobrindo grande parte de sua (protuberante) testa. Poucos segundos, pois então todos saíram de seus respectivos transes crítico-demoníacos, recolocaram suas máscaras de harmonia-de-reunião-(hipócrita)-de-família. Sorrisos para todos os lados, abraços, e desejos, mais desejos - feliz páscoa, feliz páscoa, espero que entrem muitos ovos na sua cesta - e aí por diante. Uma família unida, feliz, onde todos se amam. Um estado utópico tocante.
Gabriel, com sua cabeça a ponto de estourar por um ataque extremamente indesejado e estupidamente forte de sua migrânea, deita-se no sofá da sala, fecha a porta, e mesmo assim escuta a conversa (os berros, a disputa por atenção, todo aquele falatório sem sentido sobre alguma doença ou sobre a vida de alguém do passado) de seus parentes. E vejo este o momento propício para uma observação: Italianos deveriam vir com botão de volume. Falam alto mesmo quando estão sussurrando, é algo incrível. E extremamente irritante quando se tem a sensação de ter uma bateria de escola de samba tocando, privilegiadamente, só pra você, dentro do seu crânio.
Passados alguns minutos, chega sua mãe, sua irmã, e seu padrasto. Padrasto esse que por sinal está de boné. Gabriel se questiona sempre daonde ele tira aqueles bonés ridículos (Estilizados com nomes de lojas de materiais de construção, mercados, bancos, ou de algum ponto turístico extremamente irrelevante e sem graça país a fora), e também, daonde ele tira coragem para sair em público com aquilo. Padrasto esse que, também, está de aniversário, no dia da Páscoa. Está de anos em festa no dia em que as pessoas querem levar vários ovos. Agora, além de desejos de feliz páscoa, são vários e vários desejos de felicidades, muitos anos de vida, enfim. Momento clichê, totalmente previsível.
O Padrasto e a mãe vão em direção a cozinha, aonde a anfitriã prepara o almoço, que por sinal, parece estar sendo preparado para o triplo de pessoas que estão no local. Outra coisa incompreensível sobre italianos é o exagero nas comidas. Deve ser complicado contar quantas pessoas estão no lugar, e ter noção de que está em excesso. E ainda mais, sendo preparado por esta pessoa, o único pensamento que se pode ter é do clipe de Telephone, da Lady GaGa. Sabe, aquele momento da cozinha? Então. O medo existe, e quem tem orifício anal, tem medo, já diriam os antigos. A anfitriã então, interrompe o preparo do seu tão esperado banquete para cumprimentar seu genro e sua filha caçula, e então entrega um pacote para o genro. Um presente, tão amável sogra.
Mas claro, já era de se esperar que ela repetiria um ato que já aconteceu muitas e muitas vezes. Só não seria crível que sua audácia e capacidade de atuação teria aumentado drasticamente com o tempo. Alguns diriam que isso é a idade, que ela apenas está senil. Mas não, podem crer que não. Ela tem total consciência de seus atos, o que é extremamente triste.
Vilmar, o padrasto e genro aniversariante, entrega o pacote a sua esposa, para que ela abra o presente recebido de sua sogra favorita, e única (até aonde se tem conhecimento). Ciza, a mãe, e esposa do aniversariante. abre o pacote, e então tira uma camisa. Até aí, para um advogado, que usa camisas todos os dias, seria um presente extremamente útil, e digno de um agradecimento. Seria, se não fosse o detalhe de que a camisa era usada, estava amassada e com o colarinho manchado, a etiqueta totalmente lavada e esgaçada. Velha. Repassando algo que não tem mais utilidade, afinal de contas, o segundo marido da anfitriã fora dar um passeio de mãos dadas com Perséfone no mundo inferior.
Ciza olha com desdém para o presente, olhando bem para os dentes do cavalo dado, e então, dispara:
- Essa camisa é velha. Olha, está toda amassada! O colarinho todo manchado, a etiqueta mostra que isso aqui já foi lavado milhares de vezes. Que tipo de presente é esse?
- Claro que não Ciza, que absurdo você falar esse tipo de coisa! Eu sempre dou do bom e do melhor pra minha família!
- Ah, tá bem. Não é a primeira vez que a senhora faz isso, eu que não vou levar isso pra minha casa.
Dizendo isso, joga a camisa em cima da mesa da cozinha, e vira as costas. Nesse momento, foi como se a lua cheia passasse pelos olhos do lobisomem, pois a anfitriã ficou raivosa. Começou a bufar e resmungar, como se amaldiçoando todas as gerações da filha caçula. E claro, que sempre que o lobisomem aparece, o que ele procura? Uma vítima. E sempre tem um criatura tola que está passando perto do habitat da besta. Exatamente.
Camila, a filha mais velha da prima de Gabriel (com 8 anos de idade), presente no macabro recinto da besta, tem uma educação inexplicável. Ou melhor, a falta dela é inexplicável. Sua falta de limites é incrível, vive como se tudo fosse seu, e é seu agora, não existe espera ou respeito em seu mundo. E neste dia, em especial, ela agiu no lugar errado, na hora errado.
No centro da sala de jantar do recinto da besta, há uma mesa de madeira, de 10 lugares. Cadeiras estofadas, feitas da mesma madeira escura da mesa, com entalhes na parte superior do encosto. Sobre a mesa, uma toalha branca, estendida por toda sua extensão, e sobre esta, pratos, talheres e copos empilhados, esperando para serem distríbuidos a frente de cada um dos assentos, para depois servirem de recipiente da comida a ser servida pela anfitriã.
Nesse momento, Camila passa pelo recinto, mal sabendo que no cômodo ao lado, na cozinha, está residindo uma criatura que ela não gostaria de enfrentar: sua bisavó à beira de um ataque de nervos. Olhando então para aquelas louças organizadamente empilhadas sobre a mesa, sua maior vontade foi de colocar suas pequenas mãos juvenis e descontroladas sobre elas, e dispor da maneira que bem entendesse. Não que elas estivessem fora de ordem, pois já foi dito que estavam organizadas, mas por um simples detalhe: a disposição não tinha sido obra dela, e ela, no seu mundo particular, é quem dizia como algo fica ou não fica colocado em algum lugar. Que assim seja.
Ela estende a mão para tocar no primeiro prato, mas para seu azar e sorte das louças, a anfitriã passa justamente nesse momento pela porta que divide a cozinha e a sala de jantar. Vendo a pequena criatura esticando seu corpo para alcançar seus pertences, a "lobisanfitriã" que está espumando e amaldiçoando cada um dos fios de cabelo de sua filha caçula, coloca seus olhos vermelhos de fúria sobre a criança, e esbraveja:
- SUA CRIANÇA DESCONTROLADA, O QUE VOCÊ PENSA QUE VAI FAZER? ATÉ PARECE SUA AVÓ, TOTALMENTE SEM LIMITES ACHANDO QUE PODE PEGAR O QUE É DOS OUTROS ASSIM DE QUALQUER JEITO! NÃO MEXA NAS MINHAS LOUÇAS, VOCÊ VAI QUEBRÁ-LAS, SUA DESCUIDADA! SAIA JÁ DAÍ, AGORA!
Primeiro, Camila paraliza perante a besta em surto, então, vira as costas, e chorando descontroladamente, corre em direção a algum porto seguro. O primeiro encontrado, é sua avó, uma das filhas da anfitriã, Adelsa. Ela olha para avó, e chorando, conta todo o episódio, entre um soluço e outro. Adelsa fica séria, e chega então para sua filha, e conta o que aconteceu. Graciela, a mãe de Camila e filha de Adelsa, respondendo a seus instintos maternais pelo menos por uma vez, levanta-se e vai tirar satisfações com a anfitriã, sua avó.
- A SENHORA É LOUCA? GRITAR ASSIM COM A MINHA FILHA, FALAR MAL DA MINHA MÃE, SENDO QUE NENHUMA DAS DUAS FEZ NADA PRA VOCÊ?
- SUA FILHA ESTÁ PENSANDO O QUE? QUE MINHAS LOUÇAS SÃO BRINQUEDOS DELA PARA ELA ACHAR QUE VAI POR A MÃO? ELA IRIA QUEBRAR TUDO!
- ELA NÃO FEZ NADA, NÃO FEZ! A SENHORA É LOUCA, TOTALMENTE LOUCA!
Graciela, que é branca como giz, estava completamente vermelha, até a raiz dos seus cabelos. Olha para a mãe, chama as duas filhas, e anuncia que está indo embora. Não pretende ficar no mesmo lugar que a insana anfitriã, que desrespeitou sua filha. Reúne seus pertences, pega as filhas e sai pelo pequeno portão cinza, sem se despedir de ninguém.
Começam então os cochichos. É interessante que mesmo em lugares com poucas pessoas, as fofocas sempre acabam distorcidas. Já se dizia em agressão física, pratos quebrados, rostos estapeados. Só faltava o sangue e a morte pra se ter uma tragédia grega pascal. Mas, como era necessário manter o teatro vivo, afinal de contas "the show must go on", todos esqueceram em poucos segundos o acontecido. E todos voltaram a falar de seus problemas, e dinheiro (ou a falta dele), de como os filhos são e não são, ou seja, nunca muda, nunca vai mudar.
Depois de tanta conversa jogada fora (no sentido literal de jogar fora), era chegada a hora da utilização de suas bocas para outro fim: alimentar. A anfitriã dispôs todos os (exagerados e demasiados) pratos sobre a mesa, e chamou a família para o almoço.
Gabriel chegou a mesa e logo foi sentando-se ao lado de sua irmã de 6 anos, Luiza, que solicitou a companhia do irmão a mesa. Então, Rafael, um dos primos, 28 anos, franzino, com marcas de acne na face que não saíriam nunca dali, para auxiliarem eternamente na recordação dos furúnculos que possuía na adolescência, e muito reservado, só usando sua voz para fazer comentários desnecessários e dar idéias indesejáveis. O que não foi diferente desta vez.
- Vamos rezar um pai nosso antes de comer?
- Alguém deve estar brincando comigo que eu vou ter que levantar! - ironiza Gabriel, olhando com ânsia para o primo, que responde com um sorriso amarelo na sua face vale-das-cicatrizes.
- Claro que vai - responde animadamente Vilmar, com o seu tão patético boné do Marco das 3 Fronteiras sobre sua cabeça loira.
Gabriel, à contragosto, levanta da mesa e vai atrás de sua mãe, abraçando-a. Gabriel e a mãe se dispuseram estrategicamente perto do corredor que leva ao banheiro da casa, como que prevendo que alguma situação durante a oração os obrigaria a ir ao cômodo. Seria quase como uma disputa para ver quem chegaria primeiro, mas os dois estavam ali, a postos.
A anfitriã então iniciou a oração, sendo ela a única a fazê-la em voz alta, todos os outros ao redor da mesa apenas resmungando a oração que Jesus vos ensinou. Menos Gabriel, ele está em silêncio, apenas avaliando a situação, olhando por cima do cocuruto da mãe para todos os presentes, principalmente para a anfitriã, que parecia uma daquelas senhoras beatas figurantes de filmes que se passam no sertão, só faltando o véu na cabeça para parecer que tinha saído diretamente do elenco de apoio de algum filme de Guel Arraes. Chegando então quase ao final da oração, acontece o esperado por Gabriel e sua mãe. A situação que os faria disputar pelo banheiro. Não por alguma razão fisiológica, não. Por uma questão de educação. Não seria gentil rir da anfitriã enquanto ela comete um erro de português monstruoso durante o Padre Nosso:
- (...) Predoa nossas ofensa, assim como nóis preduemo quem nos ofende (...)
Gabriel solta sua mãe, e antes que ela mova um dos seus pés, ele dispara em direção ao banheiro, batendo a porta com força demais para passar despercebido pelos outros. Chegando lá, ele respira fundo, segurando-se para não rir, temendo que alguém escute. Lava o rosto, e volta a mesa. Estão todos já sentados, e quando ele volta, todos os olhares voltam a ele, assim como quando chegou. Além de ser um gay, alternativo demais para se enquadrar no berço da família, ex-universitário, ele acrescenta agora o fato de não respeitar a anfitriã. Para o inferno com respeito. Ele senta-se à mesa, começa a preparar seu prato, e acrescente uma nota mental para ser atribuída a suas aspirações de virada de ano:
Em 2011, eu não preciso de outra dose dessas. Eu sobrevivo a uma Páscoa em casa, sem esse teatro. Obrigado.

domingo, 4 de abril de 2010

Memórias do Indizível IV - Um Talvez Ser Humano, Um Quê de Cada um de Nós


Ele falava, falava, falava, mas não dizia nada. Dizia muito sem falar um A.
Expressava mas não significava. Contava mas não completava.
Tentava, mas não continuava. Vivia, mas não valia nada.
Falava, falava, falava. Mas nada acrescentava.
Todos olhavam para ele, a dizer: ele é um nada.
Observava tudo, e nada notava.
Queria tudo, mas nada conquistava.
Almejava a glória, e retornava a escória.
Não sabia se podia, mas sempre pôde saber que não tentaria descobrir se conseguiria.
Era a mistura de tudo, se mostrando com uma face de nada.
Era todo o querer, com aquele ar de jamais poder.
Era toda coragem voltando a ser o pior dos medos.
Toda a expressão de horror resumida em um sorriso bem aberto.
Era a contradição, com todo aquele jeito de uma única opinião.
Um amor tão forte, que o ódio consumia e se tornava dono.
A mais profunda era de caos, no tempo mais bonito de paz.
Um mar revolto cuja imagem lembre a de uma calmaria até então desconhecida.
A beleza mais feia explícita no rosto jovem mais velho que aqueles que vêem no mundo, jamais viram.
A decadência visível levando a uma ascendência imprescindível.
A crença de que o sobrenatural não seja nada mais do que o real.
A convicção de que a dor da morte é o início da alegria da vida.
Todo o caminho do fim, levando apenas novamente para o início.

Hora do Reconhecimento!



Bom, hoje, ao ler um comentário do meu blog, eu descubro que a Letícia, do blog A Questão É? me indicou para receber o selo acima mostrado, e também aí do lado, se você olhar bem!
Agradeço mesmo a ela, por saber que o que é colocado aqui, é lido e causou real interesse a alguém. Mesmo quem diz que não espera nada de ninguém, sempre gosta de receber um elogio, sempre gosta de saber que algo que faz, por menor que seja, é reconhecido. Então, eu realmente agradeço.

E agora, eu tenho então que seguir as regras impostas ao selo, e também as devem seguir as pessoas que forem indicadas aqui:
"Falar 7 coisas sobre si mesmo(a) e indicar 7 blogs para receber o selo"

Vou dispor as 7 coisas sobre mim em tópicos, tenho certeza que algumas coisas vão soar absurdas, mas eu não me importo. É o que eu sou, não?
  • Tenho medo de espelhos, alienígenas e palhaços;
  • Fiz 2 anos de faculdade de Direito e tranquei para seguir o meu sonho, que é Comunicação Social;
  • Só fui fiel a um namorado até hoje;
  • Sou extremamente fácil de tirar do sério;
  • Tenho alergia a tudo que você pode acreditar, minha rinite é daquela espécie bem premiada e nem um pouco seletiva;
  • Música pra mim é muito importante, escuto tudo, se duvidar, tenho até Kelly Key no meu HD;
  • Falo demais, falo dos outros, falo de coisas idiotas, o que importa é: eu sempre estarei falando.
Acho que foi né? Se eu ainda sei contar, tem 7 coisas ali, enfim.
Agora, é a hora de indicar, correto?
Então, aqui estão os queridos blog indicados a este selo.
Bom, blogs indicados, espero que gostem, assim como eu gostei de receber!
Agradeço novamente a Letícia pelo reconhecimento, realmente é muito válido!
Obrigado.

sábado, 3 de abril de 2010

O Quarto Cinza; Ou qualquer outro lugar dentro de cada um de nós.

Sabe quando, no silêncio do seu quarto, você sente estar sendo observado?
Como se alguém estivesse ali, cuidando de cada um dos seus atos, tentando perceber qualquer falha, qualquer deslize, para então vir e te punir?
Quando você mantem uma falsa posição de superioridade, mas sabe, no interior de si, que existe algo errado, algo incompleto, algo roubado?
Um sentimento, uma retribuição, um perdão, um medo, uma discussão.
Algo que você deixou para trás, e não teve a capacidade de olhar novamente, de juntar as peças e resolver da melhor forma possível.
Por mais que não haja ninguém aí, vigiando seus passos, esperando para te punir assim que a primeira lágrima escorrer do seu rosto, você sabe que tem algo a fazer, e não espere que alguém venha e amarre as cordas em seus braços, e, como um marionete em tamanho real, te movimente e te leve da forma mais fácil a solução.
Sem coragem, sem crença nos seus próprios esforços, é impossível que algo seja feito, das mais simples até as mais complicadas tarefas.
Lembre-se, também, que o tempo corre, e que o mundo não espera, ele abandona quem fica parado, para trás. Inércia não condiz com a existência.
Então, é preciso repensar aquilo que te faz sentir sempre preso, desatar as correntes, quitar as dívidas, resolver as pendências, antes que tudo que você se lembra seja algo que se perdeu no fogo, o fogo que tudo queima, o fogo do tempo, que apaga, que abandona, que cicatriza, e que, principalmente, esquece, e ajuda a esquecer.