E mais uma vez, ele estava em frente ao espelho. Mesmo com todo o meu medo dessa superfície límpida, que reflete tudo que se coloca em sua frente, ele estava ali, sozinho no recinto, sozinho em sua casa, olhando bem para os olhos da pessoa a sua frente. Olhando dentro de seus olhos.
Seriam mesmo seus próprios olhos? Ele acreditava que não. E sabia que não estava ficando louco, por mais que os outros digam que as suas palavras, suas teorias, não façam o menor sentido. Ele sabia que ali, do outro lado, residia algo. Residia alguém. Existia um outro lado.
Desde muito novo ele sentia algo estranho vindo não só de espelhos, mas de qualquer outro objeto que possa refletir sua imagem, como se estivesse sendo profundamente observado, como uma janela que levava para o desconhecido. Um desconhecido que, ao mesmo tempo que ele temia, ele admirava, ele desejava, ele gostaria de alcançar. Mas não sabia como.
Certa vez, ele teve uma visão desse outro lado, tão clara, tão pura, tão filha-da-putamente real, que ele realmente acreditou ter atravessado.
Ele tinha 15 anos, um adolescente cheio de revoltas, incertezas, e principalmente, cheio de medos. Indeciso sobre tudo, sem saber que rumo tomar, e sem saber como deixou de ser o garoto mais adorado da escola em que estudava para um quase delinquente juvenil sem rumo e sem limites. Um jovem que tinha pavor de ser acima do peso, tinha medo da reação dos demais a sua orientação sexual, e que se escondia em uma máscara de raiva, rancor e revolta para guardar para si o garoto amedrontado, carente, e necessitando de muita ajuda. Estava sozinho em casa, e sentia aquela onda de horror chegando cada vez mais perto. Por várias vezes, ele a sentiu próxima, como um fardo, um peso caindo sobre suas costas, e todas aquelas vozes em sua cabeça, apontando todos os seus erros, e todos os erros que cometia tentando consertar os erros anteriores. No fundo, era como se ele ouvisse vozes tenebrosas cantando em seu ouvido, como se estivesse ouvindo Attack of the Killerbirds de Emilie Simon, aquele som de suspense e medo, e ele não podia fazer nada para impedir. Tentava gritar, pedir para pararem, mas sua voz não saía. Ele queria fazer parar, ele não aguentava mais. Ele se jogou no chão, sentou-se, encostou suas costas na cama, abraçou suas pernas e colocou sua cabeça entre os joelhos, e não vendo diferença nenhuma, ele começou a bater na sua própria cabeça, que agora, além de ter todos aqueles sons dentro dela, ainda sentia um início de enxaqueca, que só tenderia a piorar com os ataques que ele causava a si mesmo. Então, uma luz passou perante seus olhos, e, como que entrando num estado de catatonia, ele ergueu sua cabeça rapidamente, olhando fixamente, com os olhos muito abertos, para a frente. Mas o que ele via não era a grande parede de madeira que dividia seu quarto com o quarto ao lado. Não, ele via um lugar. Quase como um deserto, não fosse pela grande quantidade de água que tocava o litoral daquele lugar. Um deserto de areia preta, e a água, de um verde, parecendo água suja, mas ele sabia, ele sentia, que aquela era a mais pura água que já teria visto em sua vida. E percebeu também, que não conseguia se mover. E ali, ali naquele lugar, ele percebeu então, que não estava sozinho. Percebeu-se a uma distância considerável da praia, e vindo em sua direção, várias pessoas, pessoas que ele poderia ter certeza que conhecia, vindo em sua direção. E todas falavam, ao mesmo tempo, davam conselhos, criticavam, repudiavam e amavam. As vozes. Uivando como lobos, oh, lobos. Todas as vozes pertenciam ao outro lado. Mas tudo acabou muito rápido. Quando acordou, ele se viu com uma camisola branca, com fechos de velcro, e num lugar desconhecido, um quarto tão branco quanto a camisola que utilizava. A única certeza que ele tinha, era que tinha voltado ao seu lado da realidade. Entraram pessoas, também de branco, em seu quarto, e perguntaram a ele se estava tudo bem. Duas mulheres, e um homem. O homem, com cabelos grisalhos, disse a ele que ele tinha entrado em estado de choque causado por um excesso de estresse e outras causas psicofisiológicas. Ele abriu a boca para dizer que não, mas achou que seria pior. Se dissesse o que realmente aconteceu, temia ter que ficar mais tempo naquele lugar, que agora ele sabia muito bem aonde era. E não era nada bom, ainda pior quando comparado ao lugar aonde esteve.
Ele estava perante ao espelho, e depois daquela sua experiência, ele nunca mais teve nenhuma experiência do outro lado. Até poucos dias antes desse momento em frente ao espelho.
Foi numa manhã, uma manhã qualquer, sendo acordado para ir trabalhar, e naturalmente, levantando de mau humor, como qualquer outra manhã ordinária. Demorou alguns minutos para se levantar da cama, então seu novamente foi altamente (e irritamente) anunciada, e então, colocou seus pés no chão. Sempre o pé esquerdo primeiro, apenas pra ir contra a grande maioria que dizia ter que acordar de pé direito. Ele não precisava daquilo, obrigado.
Foi ao banheiro, que ficava ao lado de seu quarto, fez suas necessidades fisiológicas, e olhou para sua própria imagem ao espelho. Barba por fazer, cabelo desgrenhado, olhos pesados e vermelhos, nariz irritado. Ele nunca namoraria consigo mesmo naquele estado, nunca na vida. Pensando isso, abriu um sorriso amarelo para si mesmo. Mas sua imagem não respondeu ao sorriso. Permaneceu séria, impassível, e encrespou a sobrancelha. Seguido disso, veio uma breve luz, e então, tudo voltou ao normal. Ele lavou o rosto por muitas vezes, assustado, respirando rapidamente, sentindo lágrimas nos olhos, e todo seu corpo tremendo. Pela segunda vez, em 4 anos, ele teve uma visão e uma prova do outro lado. E não sabia até que ponto isso era bom ou ruim.
E apesar de todo seu medo, lá estava ele, novamente. De uma forma que ele não sabia explicar, ele tinha certeza que ele precisava tentar, ele queria tentar um contato, uma imagem, uma porta de passagem. Queria mergulhar de cabeça na toca do coelho. Mas não sabia como, e esperava que aquele seu eu que não achou graça da sua piada sobre o auto-namoro, estivesse disposta a ajudá-lo, ou quem sabe, disposta a se tornar um único ser com ele. Não importava a maneira, ele queria se entregar. Pois, se aquele era o avesso do mundo, ou uma outra forma de viver, ele estava disposto a tentar, a tomar daquela água tão verde, que ele sabia, tem o poder de curar de toda a dor, e viver com aquelas pessoas, aquelas vozes, que mesmo tão atormentadoras, tão duras, faziam o inverso do mundo em que ele vivia.
Aquelas criaturas avesso não criticavam as escuras, não discutiam aos sussurros, não condenavam pelas costas, não atormentavam a distância. Elas estavam ali, prontas para enfrentar o mundo. Prontos para enfrentar a ele, e era isso que ele sempre procurou. Elas eram, acima de tudo, reais e realistas.
Chegando então, a realidade e ao realismo de cada um deles, chega-se ao motivo de ele querer tanto atravessar. Não importava se ele fosse ficar passando anos encarando aquela água sem motivo algum, ou se iria se tornar apenas mais uma voz na cabeça de alguém, o que importava era, que tudo era verdadeiro. Não, não. Tudo é construído sobre verdades.
O que basta saber é, quem é o avesso, e quem é o direito. Quem é o certo, quem é o real. Quem é o original, e quem é a cópia mal feita.
Ele já havia feito sua escolha. Agora, era só conquistar.
Nota do Autor: Tanto o título, quanto o texto em si, faz menção a 3 grandes obras literárias: Love - A História de Lisey, de Stephen King; O Talismã, de Stephen King e Peter Straub; Alice no País das Maravilhas de Lewis Caroll.
muitas vezes a vontade de fugir da realidade nos faz acreditar que existe uma outra,ou que estamos vivendo uma mentira.
ResponderExcluiro problema é saber até que ponto essas duas coisas nao se misturam,ou quem sabe se nao existe mesmo um outro lado?
fazendo outra observação,como vc pode ser tao criativo? só li dois de seus textos e já anseio pelo proximo! :)