quarta-feira, 10 de junho de 2015

Inocente

A culpa é do café que está quente demais, queimando meu céu da boca. Da água que não ferveu o suficiente, e esfriou rápido demais o meu chá, deixando com um gosto amargo. Da noite que chegou muito cedo, diminuindo o meu tempo de ter vontade de fazer alguma coisa. Do sol que nasceu antes do horário, e me fez ter menos horas de sono.
A culpa é do chuveiro que queimou, e me fez tomar outro banho frio. Dessa água fervente que você usa pra se banhar todos os dias, e que queima a minha pele e deixa ela áspera e seca. Das roupas de lã, que me dão coceiras pelo dia todo, e não me protejem do frio. Dos tecidos de algodão, que encolhem e desbotam facilmente, me deixando com essa imagem de deleixado por onde ando. Dos milhares de degraus dessa escada, causando-me cansaço logo cedo. Do elevador muito lento, que para em todos os andares, com todos os vizinhos pedindo para subir enquanto eu vou cada vez mais para o fundo.
A culpa é do trânsito movimentado, e de todos os atrasos decorrentes desse caos diário. Dos dias calmos, em que me obrigo a ir mais devagar para não chegar cedo demais aos meus compromissos. Da sala vazia, e do oceano de silêncio que me invade, quando minha única companhia são as paredes e a tela fria do computador. Das milhares de vozes nas áreas comuns, todas essas pessoas falando ao mesmo tempo e me causando diversos tipos de enxaqueca.
A culpa é do álcool em excesso, das drogas ilícitas e dos cigarros baratos. Dos dias de abstenção, dos copinhos com água mineral e sucos detox. Dos chás naturais, das folhas secas e dos grãos de cereal. Dos remédios pesados, das pílulas controladas. Prozac, citalopram, paroxetina. Blame it on my A.D.D., baby. Das carnes vermelhas, do sangue nos pratos, dos animais nas bocas. Das saladas verdes, dos leguminosos, dos agrotóxicos e das larvas.
A culpa é toda sua. É de todos os traumas, de todos os bloqueios. De todas as palavras rudes, de todas as censuras, de todas as obrigações. De todos os castigos, dos travesseiros sobre o rosto, dos socos na boca do estômago, dos arranhões nos braços. De todas as negações, de todas as máscaras, de todas as mentiras. De tudo que eu vi, de tudo que eu sou, e de tudo que eu permiti me esculpir. Em terra, sangue, dor e desgosto.

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