As ruas tem cheiro de podre, menino. Eu sinto sair dos bueiros, das bocas dos transeuntes, das almas mais sujas. Já não acredito mais na pureza humana, não. Foram tantas as decepções, os ataques e os furtos, que só me sobraram sentimentos ruins e pequenos sobre tudo que nos rodeia enquanto seres viventes dessa selva de insanidade e abuso. Só percebo que está tudo podre, e que eu me perdi em bolor e mofo nesses dias escuros, menino.
Tá começando a esfriar, os meus casacos já não me servem mais. Puxo as mangas com as mãos, mas não adianta. Elas estão curtas. Meus braços congelam, meus pêlos ficam eriçados, minhas unhas já estão roxas. Ando pela rua, enquanto passa esse carro ao meu lado tocando uma música qualquer dos Bee Gees. How can you mend this broken man?, cantam os irmãos Gibb, e eu pergunto também. How can you mend this broken man, menino?
Quando me dou conta, já está escuro. A noite chega mais cedo no inverno, menino. As luzes da rua estão fracas, as luzes dos carros me cegam, o brilho nos olhos se apagou. Tá tudo cada dia mais escuro, e o caminho se torna cada vez mais complicado. Eu deveria estar voltando pra casa agora, menino. Deveria estar pensando por qual rua eu vim, pra conseguir então chegar, abrir a porta, me jogar na cama e me proteger da temperatura que está caindo cada vez mais.
Tá bem difícil de voltar, menino. Tá bem difícil dizer pra mim mesmo que eu quero voltar, sabe? Tem algo me puxando pra tão longe, me levando pra tão distante, me tornando tanto outro que talvez você nem vai mais me reconhecer quando eu passar a chave na porta e entrar na sala de estar enquanto você toma chá e assiste mais uma vez algum filme do Kubrick. Talvez Buñuel. Eu já não sou mais o mesmo, menino. Me perdi naquela última curva, quando você soltou a minha mão. Me desfiz nas últimas linhas, no último poema escrito no muro, na última canção do teu disco favorito do Bowie. Aladdin Sane. E em Lady Grinning Soul, ele dizia: "She will be your living end". Eis o fim da minha vida. Eis aqui, pra recomeçar.
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