sexta-feira, 10 de julho de 2015

Nas gotas d'água

Você foi pra longe e não deixou uma carta. Abriu as portas dos armários, puxou as roupas com cabide e tudo. Nem se preocupou em dobrar as camisas, que passei com tanto esmero pra que ficassem bonitas pra você ir trabalhar. Jogou tudo dentro da mala, de forma que amarrotasse tanto que nenhuma das minhas marcas ficasse nos tecidos. Deixando a marca da mala no lençol da cama. Deixando as marcas na pele onde você tocava.
Tirou da geladeira todas as coisas que você poderia precisar, seja lá pra onde você foi. Deixou apenas os laticínios, pois a sua intolerância a lactose te impediria de consumir qualquer um dos queijos ou dos iogurtes que consumo diariamente. Sua intolerância a nossa coexistência não conseguiu mais ser disfarçada entre os beijos e carinhos ocasionais que haviam entre uma discussão ou outra. Parece que agora, você não conseguiu mais digerir nada disso.
Levou sapatos, sandálias, alpargatas. Levou os quadros que você pintava, até aquele mais bonito que decorava a nossa sala, em cima do sofá com a capa que terminei de tricotar no dia em que, finalmente, decidimos que ficaríamos juntos. Tirou as telas, uma a uma, e deixou a casa toda apenas com as paredes brancas e os seus furos. Deixou espaços vazios, deixou o mundo opaco pra ser preenchido por solidões.
Esperou que eu me ausentasse, depois de mais um desentendimento por motivos supérfluos e desnecessários. Enquanto eu batia a porta, e caminhava sem rumo pelas ruas, refletindo nas poças d'água meus questionamentos, e refletindo sobre os dias que desperdiçamos em nossos conflitos, você arrumava suas coisas. Amarrotava as roupas, emaranhava os cadarços dos sapatos, removia os quadros, preparava seus alimentos, retirava as fotos e levava as molduras dos porta-retratos, recolhia os tapetes e as fronhas. 
Não sei, quando voltei, se me surpreendi mais com a sua ausência, ou com o pouco que você havia deixado. Os móveis nus. Apenas o sofá com a capa que havia tricotado no dia em que nos iludimos achando que ficaríamos juntos para sempre. As fotos jogadas no chão, sem porta-retratos. As paredes brancas, apenas com os furos. O seu armário vazio. A geladeira com laticínios. Todas as mágoas acumuladas num canto da sala vazia, com cheiro de mofo, decepção, e saudade.

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