terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Pequenos Atos

Um olhar, um toque,
um sorriso, um abraço,
um suspiro, um carinho,
um afago, um beijo.

Uma monotonia, uma agonia,
uma procura, um encontro,
um perigo, um êxtase,
uma dúvida, uma certeza,
um passado, um futuro.

Uma confissão, um grito,
um tapa, um espanto,
uma palavra, um silêncio,
uma decisão, um vazio.

Um início,
um meio,
um fim.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Grito de Sufoco.

Envolto em questionamentos, eu tento seguir em frente. Porém, a cada passo dado, eu sinto como espinhos sob minha pele, se aprofundando cada vez mais, até encontrar a maneira certa de arrancá-los.
Em cada toque que recebo, é como se adentrasse cada vez mais em mim o desejo de te ter sempre junto a mim, com sua pele totalmente ligada a minha, não confundindo isso com desejos carnais, profanos, não. Mas com pureza, com delicadeza, com carinho. Desejos profundos de dedicar todo o meu zelo a uma única existência.
Porém, muito mais do que sua pele, não há sensação mais intensa que a que tenho quando seus olhos encontram os meus. Olhos que me percorrem, que me hipnotizam, que entram em contato com minha alma e movimenta cada partícula do que hoje eu sou, e do que eu estou me tornando, graças a tudo isso que está, ao mesmo tempo, me alimentando, me dando forças, e também me corroendo, me desestruturando aos poucos.
Em dúvida, não sei se expresso, se transformo tudo isso que eu sinto em atos, em palavras, ou se devo reprimir, para que assim nossas vidas sigam como antes, como se nada realmente houvesse acontecido.
Eu não sei o que esperar disto, e isso me corrói, me destrói, e me alimenta.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Todo Entregue

Desprotegido,
sem escudos, sem armas,
sem forças,
e totalmente violado.

Percorre minhas entranhas,
Me faz contar todas as verdades,
Me tortura até extrair o segredo mais escondido.

Perturbador,
Sinto como se gritasse em meus ouvidos,
Ecoasse em minha mente,
E me obrigasse a me entregar a este contato.

Invadido,
pelo jeito que você me olha,
que me leva ao êxtase,
e que também me faz refém
do fundo de seus belos olhos negros.

sábado, 6 de novembro de 2010

Êxtase

Alternando entre movimentos
Lentos e rápidos
Movimentos de bocas, de pernas, de braços
Apenas para manter o corpo quente.

Não apresse as coisas,
Tudo corre de maneira certa,
ritmada, até que os primeiros sons saiam.

E aí, é um entra e sai,
um ritmo constante e ensaiado,
de quem aprendeu com muita técnica,
ah! isso com certeza.

Mas também, com uma pitada de improviso,
pois é claro, que cada vez é diferente,
melhor ou pior,
mas sempre uma nova experiência.

Luz acesa, luz apagada,
o que importa é, nós não paramos,
e eu sinto todo o meu corpo estremecer
a cada vez que isso me puxa para frente,
e relaxo quando saio de dentro de toda a pressão.

Pode levar horas, pode ser rápido,
mas eu aguento o tempo que for pelo ápice da sensação,
quando as luzes todas se acendem,
e eu apenas ouço as palmas se chocarem várias e repetidas vezes,
e um coro de aplausos coroa o nosso espetáculo.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Janelas.

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Seus olhos me dizem tudo sobre você.
Todas as verdades, tudo que você esconde, todos os detalhes que você omite, todos os desejos reprimidos, todos os segredos do passado.
Tudo que está escondido no fundo de sua alma, está escrito no brilho de seu olhar.
Seus olhos, belos olhos, me dizem tudo que eu preciso saber.
Me pergunto, porém, se eu realmente quero saber, ou se prefiro permanecer na ignorância.

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quinta-feira, 22 de julho de 2010

Xeque-mate.

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Não é analisador aquele que se deixa perceber, porém, como observador.
Ele é, afinal, alguém que, silencioso, assiste aos atos, como um espectador.
Analisador real é aquele que age como espião;
que não apenas assiste ao jogo, mas convence que está a participar dele,
quando na verdade, apenas está ali para aprender como são movimentadas as peças no tabuleiro.


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domingo, 18 de julho de 2010

Desavanços.

O amor saiu pela porta de trás, em silêncio.
Deixou em cima da mesa uma carta, e uma embalagem.
Na carta deixou as lembranças, na embalagem, a saudade.
E junto com a saudade, um cartão que me questionava:
Me mostra o caminho de volta?
Sentei em um canto de sala com as lembranças em uma mão, com a saudade no colo e com a pergunta em outra, e enquanto isso as lágrimas percorriam meu rosto de forma lenta e silenciosa, montando uma máscara de solidão, agonia e sem a menor idéia de como proceder.
Olhei para cima, escancarei minha boca e puxei todo o ar que foi necessário para preencher meus pulmões afogados.
Deixei as lembranças e a questão no chão, então as guardei na caixa junto com a saudade.
Peguei a escada, a tempos guardada no canto escuro da garagem, e guardei no armário mais alto do almoxarifado.
Por mais que doa, por mais que eu saiba que eu voltarei a olhar o que o amor deixou, eu não vou, mais uma vez, pegar em sua mão e te fazer voltar.
Também já fui amor, misturado com paciência, por vezes com medo, em outras com carência, e ultimamente, vício, necessidade, mas após esta partida, só consigo ver no espelho alguém que chamo de orgulho.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Carta de Fundo de Gaveta; ou o reconhecimento da derrota

Sou fraco, e reconheço isso. Te deixei partir, e com medo de enfrentar toda a dura realidade de um mundo mais real do que meu próprio, não te procurei. Desejei, até sonhei por muitas vezes, que você apareceu em minha porta, e inocentemente, me pediu para entrar. Eu, surpreso, apavorado, nervoso, apaixonado, te convidaria a entrar, não saberia se apertaria sua mão, se te abraçaria, ou se me jogaria em seus braços. Iria perguntar se deseja comer algo, se quer um café, um chá, uma sopa, um almoço, janta, meu corpo. Perguntaria se está tudo bem, o que tem feito, como tem vivido, o que te trouxe até aqui. Tudo de uma vez só, sem te dar espaço para respirar, perdendo todo meu fôlego para te prender aqui, com medo de que você vá embora. Com muito medo de acordar.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Através dos Olhos

Eu não consigo me lembrar de muita coisa. Muitos pedaços da minha história foram largados pelo caminho que me trouxeram até aqui, como páginas soltas de um livro muito velho. Esses caras que vêm ver diariamente como estou nunca respondem às minhas perguntas, dizem que é melhor eu nem saber porque estou aqui.
Perdi a noção de tempo, a muito tempo. Não sei quanto tempo faz que estou neste mesmo quarto, que acordo na mesma cama, e que ando dentro do mesmo ambiente. Mas aqui estou eu.
De vez em quando saio para andar pelas salas e corredores, mas não me comunico com ninguém. Algo me diz que eu não conseguiria manter uma conversa racional com nenhum dos habitantes daquele lugar. Mas gosto de andar, ver um pouco de televisão, observar tudo, se bem que não há muito o que observar: é tudo tão branco que chega a cansar os olhos. Dizem que é pra trazer paz. Não sei daonde: aquela clareza toda me tira do sério. Então volto ao meu quarto. Até porque, do meu quarto eu posso ver a única coisa que me agrada.
Eu já estava aqui a algum tempo quando plantaram aquelas árvores. Vi tudo pela pequena janela (que, infelizmente, não se abre) que existe ao lado de minha cama. Me sentia meio sonolento naquele momento, logo após o almoço, mas pude ver todas as mudas serem plantadas. Entre elas, uma minúscula, quase sem folhas, chamou minha atenção. E desde aquele dia, eu tive uma visão privilegiada da evolução e do crescimento de cada uma daquelas plantas. Pode parecer tedioso, mas elas eram o que mais me animava e me dava forças ali, naquele lugar.
Gritava de alegria com suas flores, me irritava quando alguém as podava ou arrancava cruelmente seus frutos, sofria quando começavam a perder suas folhas. Eu expressava com sentimentos tudo que elas não podiam expressar. E havia também, a minha pequena.
Ela continuou pequena, enquanto todas as outras cresciam. Seus galhos, mais finos, suas folhas, menos brilhantes, e nunca, nunca floresceu. Sentia pena dela, e também, um outro sentimento me fazia ser tão ligado e tão preocupado com ela: eu me sentia como ela, pequeno, desprotegido, sem chances, sem esperanças. Eu entendia perfeitamente como é ser observado como alguém que não dará frutos nem fará os olhos de alguém brilhar de alegria e orgulho.
E seguia minha rotina, afinal de contas, não havia muito o que fazer. Quando conseguia com os caras algum giz de cera e folhas, eu ficava a olhar pela janela e a desenhar minhas queridas árvores, em vários lances e cheio de detalhes diferentes a cada produção. Diferentes focos de luz, em meio a neblina, ao anoitecer, durante a chuva. Me alegrava em poder registrar de forma tão infantil e pura todas as aventuras que elas podiam passar, e eu não.
Imaginar que elas, mesmo sendo árvores, podem viver mais do que eu, começou então a me deprimir... Eu não conseguia aceitar que árvores, que não se movem, não falam, não agem, podem viver mais e aproveitar mais a vida do que eu! Socando a janela, comecei a xingar, esbravejar, dizer que as odiava. Alguns caras chegaram e me colocaram na cama, me pedindo calma. Só senti que meu corpo amolecia, e adormeci.
Acordei na manhã seguinte exaltado, me sentindo arrependido de ter sido tão rude com minhas belas, e decidi ir até a janela pedir desculpas, porém, já era tarde demais. Todas as folhas estavam no chão, e elas, principalmente minha pequena, pareciam secas, quase apodrecidas. Comecei novamente a gritar e esbravejar, e também a arranhar todo o meu corpo. Sentia o sangue correndo pela minha pele e não achava punição suficiente. Eu fui rude, cruel, amargo e invejoso, e causando tristeza, fiz minhas árvores morrerem! O únicos motivos dos meus sorrisos, não mais existiam! Me desesperei, não queria mais viver sem elas, e continuei a me arranhar, tirando muito sangue do meu corpo, até que os caras chegaram para estragar tudo. Ataquei-os, os mordi, bati, arranhei, chutei, até que eles conseguiram me segurar e me levar.
Não sei por quanto tempo dormi, mas sei que acordei em um quarto muito escuro, com paredes estofadas, e estava todo enfaixado, sentindo meu corpo todo dolorido e inchado. Sentei com dificuldade, olhei ao meu redor, e me sentindo um pouco mais desperto, me espantei! Ali não era meu lugar, eu queria voltar ao meu quarto, mas me sentia fraco demais para pedir para voltar, e voltei a deitar no chão e adormeci.
Quando tornei a acordar, estava numa maca, sendo levado por uma mulher, jovem, loura, alta, não tão bonita, mas que passava um ar de tranquilidade que me fizeram bem, e quando notou que abri meus olhos, sorriu.
Me disse que eu sofrera algum tipo de crise temperamental, precisei de um tratamento diferente, mas que estava melhor e que estava me levando ao meu quarto. Deixou claro, então, que a partir de agora seria ela quem cuidaria de meu caso, e que me faria ficar bem.
Respondi apenas com um sorriso, amarelo. Não era a primeira vez que alguém dizia que iria me fazer ficar bem. Eu só não entendia bem do que. Eu me sentia bem, apenas me irritava por ficar aqui preso, apenas isso. Mas não adiantava repetir isso, eu não iria sair de qualquer jeito, e também não acreditava nas palavras da moça, por mais simpática que ela tenha sido.
Ela me ajudou a levantar da maca e me colocou sentado em minha cama, com as pernas esticadas, e perguntou se eu precisava de algo. Pedi a ela para abrir as cortinas, que gostava de olhar para fora.
Ela assim o fez, e o que vi me fez sorrir, e quem sabe, até acreditar nas palavras da moça. Não sabia quanto tempo havia passado distante, porém tempo suficiente para que minhas árvores estivessem novamente com folhas, e não apenas isso, com botões! E o mais importante era, que a frente de todas elas, estava uma pequena árvore, cujas folhas nunca haviam brilhado tanto, e que mostrava acima de todas estas folhas, um pequeno botão prestes a se abrir.
Eu bati palmas e ria descontroladamente, pois não conseguia conter tamanha felicidade! Por ela, e por mim. Quem sabe, ainda havia uma esperança. Quem sabe, eu poderei não apenas admirá-la pela minha janela, mas poder sentir o perfume de todas as flores que brotarem dela. Se ela não perdeu as forças, se ela não desistiu de ser como as outras, eu também não desistirei.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Princípio de Pauli.

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Não será necessário fingir, não.
Não precisa atuar. Não force uma situação, eu não quero te chatear.
Não é necessário agir assim, não pretendo te constranger.
Pode ficar.
Eu já estou de saída.

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sexta-feira, 25 de junho de 2010

The Kid is Not My Son, mas ainda assim...

Era a primeira semana de Rodrigo em seu emprego no Cartório de Registro Civil. Jovem, de estatura mediana, cabelos castanhos, pele clara, que havia sido escolhido para atender no balcão e pegar os dados para registro não somente por ser muito educado e muito simpático, mas também porque nenhum dos antigos agüentava mais os absurdos que ocorriam no ambiente. Obviamente, isso não foi dito ao novato, que aceitou prontamente a posição que o haviam colocado. Rodrigo, na verdade, nunca pensou em trabalhar antes, apenas ocupando seu tempo a noite com a faculdade, porém, cansado das discussões diárias com a mãe, que o chamava de desocupado e desinteressado, decidiu por procurar um emprego, e quando descobriu sobre a vaga, decidiu tentar a sorte. Pois bem, ele a conseguiu, a mãe ficou super satisfeita com a novidade. Ele só esperava que tudo corresse bem.
Nos primeiros dias, nada de anormal. Recolheu dados para certidões de nascimento de várias meninas: Ana, Laura, Luiza, Giovana, Camila. Muitas meninas, mas nada fora do comum, e mesmo sendo bastante otimista e alegre, ele sabia que mais dia, menos dia, aparecia alguma situação desconfortável, afinal de contas, quando se lida com pessoas, vários tipos de situação podem ser esperadas.
Era uma quarta-feira, e tudo começou normal. Levantou, tomou um banho, escovou os dentes, comeu uma torrada com café e voltou a higienizar a boca, e saiu para o trabalho. Por morar a três quadras do cartório, decidiu que iria trabalhar a pé; ajudaria o meio ambiente, não teria que se irritar com o trânsito, e poderia observar as pessoas que passavam pela rua.
Chegou ao trabalho, cumprimentou a todos que trabalhavam com ele. Além dele, mais duas pessoas ficavam no balcão: Jorge, um homem de 45 anos, muito simpático e conversador, de estatura mediana, uma proeminente barriga, pele clara e flácida, mas o que mais chamava a atenção eram seus cabelos. Ele é o que pode se chamar de "careca cabeludo", em vista que todo o topo de sua cabeça era calvo, porém ele tinha cabelo na nuca, cabelo este que chegava até metade das costas e vivia amarrado. Também junto a eles trabalhava Soliane, que, apesar dos 28 anos, aparentava mais, devido a seu desleixo e seu mau humor. Respondia aos cumprimentos dos colegas com grunhidos, e não falava mais que o necessário, e somente o profissional.
Rodrigo se colocou em seu posto de trabalho e esperou que os atendimentos começassem. Logo chegaram pessoas, algumas chorosas, com certidões de óbito a serem retiradas, outros com pequenas crianças no colo, para expedirem certidões de nascimento. Todos com suas senhas na mão esperando a serem chamados. Rodrigo então apertou o botão e vieram ao seu guichê um casal simples, com uma criança no colo, e mais duas crianças pequenas a tiracolo. Ele, o pai, era alto, de pele castigada pelo sol, e corpo forte, visivelmente proveniente de trabalho braçal. Ela, a mãe, era mais baixa, tinha cabelos muito compridos, e tinha um rosto que passava um semblante cansado, porém feliz. Sentaram-se a frente de Rodrigo, a mãe segurava o bebê, e as duas crianças, duas garotas idênticas, de no máximo 4 anos, ficaram ao lado do pai, de mãos dadas e as mãos livres apoiadas na coxa esquerda do pai.
- Bom dia, sou Rodrigo, em que posso ajudá-los?
- Bom dia seu moço - respondeu o pai, estendendo a mão ao jovem - Eu Zé Carlo, e essa é minha esposa, Zulmira - com a menção de seu nome, a mulher tirou os olhos de seu filho e olhou ao rapaz, sorrindo - Nós veio aqui pra mó de fazê a certidão do nosso pequeno, porque o moço sabe né? Se nós deixa de fazê isso logo, nós tem que pagá multa, e nós não tem dinheiro pra ficá gastano né seu moço?
- Sim, eu compreendo meu senhor. E que belo menino vocês tiveram! Tão bonito, tão forte!
- Ah, brigado seu moço! Ele é forte mesmo, o senhor sabe? Ele nasceu até imaturo de 7 mês e os doutô tudo ficaram assustado de como ele ficou bom ligero!
- Nossa, verdade que o menino é prematuro? - Rodrigo respondeu, corrigindo sutilmente o erro cometido pelo pai - Se o senhor não me contasse, eu jamais imaginaria!
- Pois não é? Esse aí carrega sangue de macho, que nem o pai - disse Zé Carlo, sorridente, batendo no peito.
Rodrigo, para não estender ainda mais a conversa e para não atrasar seus atendimentos, decidiu ir direto ao assunto:
- Mas então senhores, vocês podem me passar a ficha médica para as informações, para que eu possa registrar o filho dos senhores?
- Claro seu moço, claro claro. Tá contigo né amor?
- Tá sim Zé Carlo, mas tá na bolsa aqui ó, e não tem como eu pegá com esse menino no colo.
- Ullyene, pega ali na bolsa de sua mãe, ande - ordenou Zé Carlo, cutucando a menininha que estava mais perto dele.
Ullyene foi até o lado da mãe, e abriu a bolsa, vasculhando, em busca do documento.
- É esse aí fia, do lado das fralda de pano. Esse com carimbo verde em cima - indicava a mãe, olhando para dentro da bolsa - Isso fia, isso. Entrega pro rapaz ali, entrega.
Ullyene esticou seu bracinho até onde pôde, e Rodrigo então pegou o papel. Quando abriu o papel, notou, porém, que algo faltava.
- Senhor, me desculpe, mas tem algo de errado neste documento. Está tudo certo em relação a data, horário, local, nome dos pais, porém, normalmente o primeiro nome do filho já vem escrito. Aqui, porém, existe apenas um número.
- Então, moço, é aí que eu precisava mesmo conversá com alguém assim, mais entendido das coisa né? Sorte que eu peguei um rapaz assim, que nem o senhor, de pouca idade, que entende das coisa do mundo melhor que as enfermeira véia e coroca daquele hospital.
- Por que senhor? O que acontece?
- Sabe, esse menino é nosso sétimo fio, e o último, mó de que minha esposa aqui teve uma tal de cosplicação no ovário e aí depois que ela pariu, eles tiveram que tirar antes que desse algum outro pobrema. Então, nós decidimo que o nome dele ia ser especial, que ia ser algo que marcou a nossa vida junto. Nossos 6 fio tem tudo nome começando com U: Uoshito, Uesley, Uiliam, Ulbert, e as gêmea, Ullyana e Ullyene, que tão aqui com nós. Mas esse, nós decidimo que nós ia homenagear alguém. Então, nós lembrado de quando nós conheceu um o outro, e que a gente tava numa festa de uma amiga nossa, e que a gente se viu, e que tava tocano uma música em inglês muito da bonita, e que nós tava dançando, se vimo, e foi amor de primeira oiada. E ainda, esse ano que passô o cantor dessa música veio a falece, então nós decidimo que ia ser duas coisa boa: homenageá ele e lembrá da nossa história.
Rodrigo, interrompendo o senhor, resolveu novamente adiantar o assunto, ficando preocupado que algum superior seu chegasse e notasse a demora no atendimento:
- Sim, eu entendo senhor, mas como vai ser o nome do garoto então?
- Então, nós decidimo que ele vai ter o sobrenome de mãe e de pai, que nem os outro 6, né? Ferreira de Souza. Eu vô escreve o nome do menino pro senhor, pra mó de o senhor não escrever errado que nem as enfermeira tava escrevendo. O senhor pode me alcançar um papel e uma caneta?
Rodrigo prontamente entregou um rascunho de seu bloco e uma caneta para que o homem escrevesse o nome do filho, já ficando assustando com o que estava por vir. Zé Carlo lhe entregou o papel, e em garranchos, estava escrito o nome do filho: "Maicoujétso Ferreira de Souza". Rodrigo teve que segurar o riso, então dirigiu a palavra ao homem.
- Meu senhor, você quis dizer Michael Jackson?
- Como filho? Escreve aí pra mó de eu vê?
Rodrigo escreveu o nome corretamente, e então o homem fechou o rosto, parecendo levemente irritado.
- Óia moço, as enfermera escreveram a mesma coisa aí, mas escuta, nissaí eu to leno Michael Jackson - o homem leu exatamente como se escreve em português, sem a fonética inglesa correta - e o nome do cantor, que também vai ser o nome de meu bebê, é Maicoujétso! O senhô não conhece não, o cantor? Que canta aquela música assim: "Billidin, izómalaan, chijãzagou rugains areuan"? Não sabe não?
- Senhor, claro que conheço, mas o nome correto não é como o senhor escreveu. Além do mais, faz algum tempo que a legislação nos proíbe registrar nomes que sejam assim, tão...
- Tão o que rapaz? Fala, desembucha! - interrompeu Zé Carlo, já parecendo levemente irritado.
- Assim, senhor, que sejam estrangeirismo escritos de forma tão diferente e que possam levar a criança a algum tipo de constrangimento. Nós podemos até escrever de outra forma, veja...
Rodrigo tentou melhorar a situação, e escreveu em um papel Maicon Jeckson, que ainda errado, lhe parecia um tanto melhor que Maicoujétso. Zé Carlo olhou para o papel, e, vermelho, amassou o papel em sua mão.
- Moço, eu não quero que seja Michael Jackson, Maicon Jeckson, porque não tem nenhum N no final de Maico... O nome do meu filho é Maicoujétso Ferreira de Souza, e eu acho bom o senhor fazê essas papelada aí senão a coisa fica FEIA! - a última palavra, o homem gritou, e bateu no balcão, fazendo com que o menino que era a causa da discussão começasse a chorar.
- Viu seu moço? O que o senhor tá fazendo? Tá fazendo meu filho chorar! Vamo seu moço, acelera isso daí senão a coisa fica feia!
Rodrigo não sabia o que fazer. Naquele momento, Jorge não estava no balcão, devia estar no banheiro, ou fumando, ou tomando café, e Soliane parecia estar em outro lugar, sem nem dar atenção ao ocorrido, atendendo outro casal, com uma bela menina. "Eles devem estar batizando uma Laura, enquanto esses doidos querem um Maicoujétso" pensou, pesaroso, o rapaz.
- Senhor, me perdoe, mas eu não posso. Não existe uma segunda opção?
- NEM SEGUNDA, NEM TERCEIRA, NEM NADA! É MAICOUJÉTSO! - O homem já estava de pé, apoiado no balcão, olhando dentro dos olhos do rapaz.
- Mas senhor...
- OLHA AQUI MOÇO!
Neste momento, para sorte de Rodrigo, Jorge estava retornando ao seu lugar, e viu o homem quase agredindo seu novo colega de trabalho. Aproximou-se, e dirigiu a palavra ao homem exaltado:
- Meu senhor, meu senhor, acalme-se... o que acontece?
- Olha moço, eu to aqui, querendo registrá meu filho, seguir a lei, e esse guri aí não tá quereno ajudar, olha, eu não saio daqui sem esse documento, e eu não quero nem saber....
Percebendo o espanto e o desespero por não saber o que fazer do seu jovem colega, Jorge pediu para que a família o acompanhasse a um local mais reservado, apontando a direção para eles, e piscando para Rodrigo, deixando-o mais tranquilo e agradecendo por não trabalhar somente com Soliane, pois se dependesse dela, ele estaria sendo estrangulado neste momento. Exatamente quando pensava isso, ela chamou a atenção dele.
- Hey, psiu...
- Hmm - grunhiu ele em resposta, assim como ela fazia.
Ela, com uma expressão cínica e com tom igualmente cínico na voz, lhe disse:
- Fique feliz por ele não ter com ele uma faca ou algo parecido, uma vez um cara tentou cortar minha garganta. Mas relaxa, um dia você aprende a relevar as regras, a relevar tudo isso aí. O Jorge é todo simpático porque ele é casado com a chefe aqui, faz isso pra ficar perto dela só, mas na maioria, todo mundo acaba assim, que nem eu. Você chega lá.
Ele apenas balançou a cabeça, e disse que iria ao banheiro. Chegando lá, se olhou no espelho e imaginou quanto tempo ele levaria pra se tornar tão insensível quanto Soliane ou os outros, como ela diz que a maioria é. Ainda olhando para os olhos de reflexo, disse para si mesmo:
- É mãe, eu prefiro continuar a discutir com você e você me chamando de desocupado, do que ter que ser quase assassinado por pais de Maicoujétsos, Leididais, ou qualquer outra coisa que possa aparecer por aqui...

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Uníssono

Apenas lhe concedo a honra desta dança se você se desprender de todo o seu orgulho. Não darei minha mão a um homem que não consegue parecer alguém comum, alguém como todos os outros. Não lhe permitirei encostar em meu vestido e me despir, se nem nu você consegue perceber que o seu corpo é como todos os outros. Não deixarei você invadir minha vida se você não consegue nem abrir espaço para que alguém saiba realmente quem você é.
Se você não sabe descer de seu pedestal, então eu me permito a lhe convidar a dançar sozinho ao som desta bela melodia que você escreveu para você mesmo.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Passos Incertos; ou O Primeiro Ato

Acorde. Acorde de tudo que você criou para viver melhor.
Saia do seu mundo e venha para o mundo que todos dividimos, para todo este circo eternamente armado que chamamos de casa.
Coloque sua melhor máscara, aquela com o maior sorriso, aquela que todos vão aceitar facilmente, e sua roupa mais bela e mais cara.
Dê-me sua mão, junte-se a todos nós, e venha dançar conosco a valsa dos quase-mortos.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Portais

Eu que sempre quis ter facilidade para estar em ambos os lados, agora temo.
Seu toque foi como uma chave, que, após ser moldada durante tanto tempo, finalmente abriu as portas, quebrou os bloqueios que me faziam estar em contato com tudo que eu sempre desejei ter por perto.
Sinto seus olhos, vejo seus olhos encarando os meus, sinto seu toque, sim, o toque, toque que acaricia, que puxa, que machuca, que arranha, que dilacera. Tenho certeza que vou guardar para sempre a lembrança dos primeiros cortes, e dos primeiros gritos. Gritos no silêncio, que só eu consigo ouvir.
E foi depois de você. O que mais você irá trazer? O que mais você tornará real, em tudo que eu sonho e anseio? O que mais você está destinado a fazer por mim?
Eu não sei, apenas espero. Apenas anseio, e também temo.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Rios de Sangue; Ou os sinais escondidos atrás dos olhos

Era como ver tudo por cima. Nâo como se estivesse sobrevoando, mas como se estivesse de joelhos sobre um teto de vidro, sobre um grande aquário.
Era um lugar qualquer, uma praia, um deserto, um campo, impossível de definir o que aquele solo negro e destruído representava. Só o que se podia saber era que se via ali um lugar em ruínas.
Então, surgiram as pessoas. Vindo pela direita daquele cenário apocalíptico, estavam pessoas aparentemente comuns, maltrapilhos, sujos, acabados, e todos com uma expressão comum no rosto: cansaço e desespero. Não andavam, se arrastavam, alguns caíam e se levantavam, sozinhos. Ninguém se falava, ninguém se ajudava. Apenas seguiam em frente. Seguem em frente, até que param, todos ao mesmo tempo, olhando fixamente para o lado oposto.
Do outro lado, vinham pessoas todas vestidas de preto, com armas apontadas para a frente. Caminhavam eretos, e seus passos eram ritmados, fortes, parecendo ensaiados, e seguiam em frente, indo contra a população de desolados que estava ali, estática.
A menos de 2 metros do grupo, os homens de preto começaram a atirar. Um assassinato em massa, tiros à queimarroupa, sem escrúpulos, sem medo.
E ali em cima, apenas como espectador, ele não sabia quem eram aquelas pessoas, mas de uma coisa ele tinha certeza, ele sentia em cada pedaço de seu corpo: ali havia uma destruição em massa de vidas inocentes. Ele gritava, batia no vidro embaixo de seu corpo, e tudo que podia fazer era ver as balas sendo disparadas e o sangue daqueles pobres seres sendo derramado, e quando sua garganta ficou tão seca de tanto gritar, ele acordou, mais uma vez.
Já não era o primeiro pesadelo, tantos outros haviam ido e vindo nesses dias em que ele não mais dormia a noite, apenas cochilava para ver situações ruins, estranhas, e que o faziam novamente acordar. Não havia sentido em nada daquilo que ele via a tantos dias, em tantos sonhos. Mas de uma coisa ele tinha certeza, algo estranho estava por vir, e uma certeza, tão forte quanto a inocência daqueles maltrapilhos, lhe dizia que não era algo bom.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Rascunhos

Não existem memórias que eu ame mais, do que aquelas que eu criei para ofuscarem as que eu mais detesto.
Se tudo fosse tão simples como escrever uma história, eu simplesmente reescreveria várias partes dela. Não jogaria tudo fora, não. Existem experiências que eu jamais gostaria de esquecer. Quem sabe, modificar uns pontos aqui, outros ali.
Reescrever o que é real, enfatizar o que não é real. Misturar vontades, criações e a dura realidade em um equilíbrio perfeito que me permitam, então, fechar os olhos e dormir em paz.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Pontos Perdidos; ou o que os olhos não deveriam ver

Estava ali de novo. Tudo que já aconteceu antes, e tudo que poderia voltar a acontecer.
Por que dizer que tudo vai mudar, que tudo que ocorreu um dia, não irá voltar? Por que prometer que daquele momento em diante, seria só seu, e de mais ninguém, se na verdade, o mundo ainda o seduzia?
Antes, aceitaria a situação, afinal de contas, também tinha uma vida pra viver, também queria ter uma vida pra viver, mas agora, que tudo parece estar tão a flor da pele, tudo parece tão real aos seus olhos, ele não pode mais aceitar tudo isto.
De novo, outro alguém entra em sua história pra ser um terceiro elemento. Ou ao menos, pra tentar. E o pior, com a sua permissão.
É como se houvesse toda aquela certeza, ou ao menos, aquela suposta certeza, e que nada nem ninguém pode mudar, desmerecer tudo o que são, tudo o que têm, tudo o que vivem e viveram juntos, mas quando não estão próximos, a vida lá fora chama, e alguém sempre dá o lance mais alto e arremata esse vazio que um deixou no outro, e acaba por tentar preencher não o sentimento, que aparentemente permanece e vai permanecer intacto, mas preencher esta falta, esta falta de volúpia, de tesão, de desejo carnal. A falta que a falta faz.
Porém, se não é suficiente saber que se tem alguém que é só seu, e vai ser sempre, se assim o quiser, pra que desafiar esta verdade, pra que lutar contra uma realidade, pra que tentar ficar perdido e sozinho?
São certas coisas incompreensíveis, mas ainda existe o tempo, e ainda existe uma vida a ser moldada, e aquela esperança de que seja moldada da melhor forma possível.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Perdendo Dentes.

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Tolos os que desistem após a primeira queda.
Não sabem que suas cicatrizes serão as marcas de sua própria vitória.


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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Só Para Apaziguar

É só um momento, só uma sensação que passa, só uma vontade momentânea, só um desejo, só. E só o que sabem dizer é que o tempo cura e faz esquecer. Mas sabe, aqui o relógio parou de funcionar, e eu juro que já tentei trocar a pilha, mas ainda assim, os ponteiros ainda estão parados no mesmo lugar. Por que será?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Rotativa; Ou lá e de volta outra vez...

- Siim?
- Sou eu!
- Ahn?
- Abra a porta, se você ainda sente minha falta, é claro...
Ele, ainda meio sonolento, não havia entendido de primeira a quem pertencia a voz do outro lado do interfone. Eram 6:30 da manhã de sábado, quem teria coragem de acordá-lo tão cedo. Mas então, ele lembrou: ela estava vindo, novamente, para vê-lo. Não que ele houvesse esquecido, absolutamente, mas ela disse que chegaria mais tarde, lá por 10 horas, e 4 horas antes eram horas suficientes para deixá-lo confuso.
- C-c-claro, claro meu bem, entre. Você sabe qual é o apartamento, sim?
- Eu jamais me esqueceria.
E ela estava ali. Mas meu Deus, ela nem havia dado tempo dele tomar um banho! E nossa, que perigo! Ela deve ter voado na estrada para chegar tão rápido, ainda mais ela, que era tão boa no volante assim como ele era na cozinha. Realmente um perigo. Ele gravou em sua mente que deveria ralhar com ela quando tivesse tempo. Quando tivesse tempo de fazer qualquer coisa a não ser admirá-la. Aproveitar o tempo que teria ao lado dela, que acabaria dali aproximadas 30 horas.
Foi até o espelho que possuía na sala, tentou arrumar os cabelos rebeldes, entrou na cozinha e ali mesmo jogou água no rosto, pegando um pano qualquer na gaveta e secando o rosto e as mãos. Abriu a porta, e ali, parado, esperou. A entrada do elevador ficava no outro extremo do corredor de seu andar, dando a ele uma visão privilegiada dos números que iam subindo um a um. Quanto mais perto eles chegavam do 7° andar, mais ele sentia um certo nervoso, misturado com ansiedade, alegria, e tristeza.
1°, 3°. Ela estava se aproximando. Que maravilha! Ela cumprira sua promessa novamente! A tanto tempo não a via, não podia tocar seus cabelos castanhos, seu rosto branco, sua pele macia, seus lábios vermelhos e sempre levemente secos, pois por um problema respiratório ela sempre respirava pela boca. Segurar em suas mãos, abraçar, se apoiar em seu corpo alto, magro, perfeitamente desenhado para encaixar suas mãos em suas cinturas e puxá-la para perto do seu. Ah, que saudade...
3°, 4°. Saudade essa, que ele sabia, voltaria. Sim, pois ela sempre voltava, para depois ir. Eles nunca moraram na mesma cidade. Seu amor era distante. Se viam de tempos em tempos. Já passaram 1 ano sem nem ao menos trocarem notícias. No início ainda, viviam suas vidas, e depois se encontravam e retomavam tudo, isso, idéia dela, ditas nas palavras:
- Quando estamos distantes, vivemos nossas vidas. Quando próximos, pertencemos um ao outro.
Isso doía nele, ter que tocar, tentar amar, tentar viver outras pessoas, apenas porque ela também faria o mesmo que ele. Não achava certo, não achava bom. Mas, o fazia. Não iria passar os dias a remoer o que a outra fazia enquanto ficava só. Curtia sua vida, sua juventude, como podia. Bebia, farreava, beijava, transava, para conseguir manter a máscara de felicidade e tranquilidade no corpo. Mas como toda a máscara é presa por um fino fio de nylon, ele sabia que um dia a sua também cairia e se despedaçaria. Despedaçou.
Chegou a hora de dizer, Chega! Não aceito essa condição. E ela, no início, mostrou-se relutante, dizendo que não sabia se poderia lhe dar tal palavra. Mas então cedeu. Disse a ele que sim, que o amava mais que a qualquer outro homem, e que seria dele, somente dele, nos momentos que pudessem estar juntos, e distantes, continuaria dele, amando-o da melhor forma que pudesse, e amando e se entregando somente a ele. Ele, então, pôde enfim viver somente para ela, porém, não sabia se ela fazia o mesmo, e preferia não saber. Preferia manter as palavras proferidas e prometidas por ela como a única verdade. Lá no fundo, ele não sabia se era a verdade, mas, preferia manter tudo como está.
Ela nunca havia dado a ele tanto amor. Se tornara atenciosa, preocupada, ligando para ele quase todos os dias, perguntando como está a vida. As vezes, dava até satisfação de onde iria, com quem iria, coisa que nunca havia feito! Ele estava em um estado de alegria que parecia não ter espaço dentro dele. E agora ela estava ali, para dar todo este amor a ele, tão próxima...
5°, 6°.
Tão próxima, que ele tinha medo. Era a primeira vez que se veriam desde esta promessa, desde esta abertura e permissão ao verdadeiro amor deles fazer parte desta história e se tornar quase o personagem principal, não importando mais as suas vidas em separado, mas sim o amor que os unia. Ele temia ser impossível passar todo este amor a ela, e ainda, não sentir todo o amor emanando dela assim como sentia da sua voz pesarosa e cheia de saudades que houvia do outro lado do telefone. Aqueles gemidos, sussuros, dizendo eu te amo e que estavam morrendo de saudade. Ele temia. E temia também como tudo seria quando ela voltasse! Será que perceberia então como foi burra de perder tantos meses esperando para vê-lo e para tê-lo e diria que esta foi a última vez que veio vê-lo? Não, achava que não... Mas ele temia simplesmente o momento da ida, o momento em que ela partiria. Passou meses preparando tudo para vê-la, para poder estar ao lado de quem mais amou em toda a sua vida. Meses amando tudo, meses ansiando, meses A AMANDO como nunca amou, pois ela viria ali, para ele, voltaria para ele toda sua, sem ter sido tocada por nenhum outro. E agora, que ele estava ali, ele temia a ida. Por que tanta espera por tão pouco? Por que tanto desejo para um breve momento?
Escutou uma música dias antes, em inglês, que dizia "You always love me more, miles away" (Você sempre me ama mais, a milhas de distância). E será que não seria isso? Que o amor deles era um amor distante, e quando próximo, eles voltariam a ser dois personagens e dois amores que apenas juntavam os corpos, mas não se tornavam um só? Ele temia, ele teme. Ele ama, e como todos os que amam, todos os que sentem que outra pessoa faz parte de si próprio, ele não deseja estar sem a pessoa amada.
7°. O elevador abriu as portas. Todos os pensamentos que passavam por sua mente se esvaíram ao ver aqueles olhos verdes brilhando, cheios d'água assim como seu. Aquele belo corpo se movimentou para fora do elevador, tirou a mochila das costas, e correu a seu encontro. Os dois corpos se chocaram com tamanha força, que qualquer um que estivesse olhando, pensaria que os dois corpos explodiriam ao choque. Mas não explodiram, permaneceram abraçados, com muita força, sem respirar.
Ali, ele esqueceu de tudo. Do cedo da hora, do cabelo bagunçado, do perigo de correr tanto,
(do medo, do medo, de todo o medo)
da saudade, da distância.
Ali, eles eram, sim, um só, e pelo tempo que tivessem, curto ou não, eles estariam unidos como um só personagem. Um só amor.
E mais para a frente, ele teria, novamente, o momento de sentir saudade, de sentir medo, de sentir que tudo iria desabar, para então se edificar novamente.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Carta de Fundo de Gaveta; Ou tudo aquilo que deveria ficar

Sabe, mais uma vez eu venho, aqui, tentar expressar tudo isso, tudo isso que eu, na verdade, nunca soube explicar em palavras. Todas as noites eu sinto um peso, um peso sobre meus olhos, meu corpo, sobre a minha alma, me pressionando, me fazendo lembrar, não me permitindo, nunca, nunca esquecer, tudo isso que aconteceu, e todas essas palavras, essas dores, entaladas na garganta, pedindo para serem expelidas, vomitadas em cima de você. Não que seja sua culpa, não, afinal de contas, eu acredito que tudo que nos acontece, acontece porque de alguma forma nós permitimos que isso acontecesse. Mas ainda assim, você é o único envolvido, você quem precisa ouvir.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Aquelas Impressões

Era como aquela moça fútil pela manhã. Ela, secretária, recebia os jornais para o chefe, e sem nem se importar com as manchetes bombásticas que o jornal estampava, percorreu as folhas ansiosa para encontrar uma das únicas coisas que realmente a interessavam naquelas folhas ásperas e sem cor: o horóscopo. Era do signo de sagitário, mas também lia o de libra, pois quem interessava a ela, era deste signo. Ela realmente achava necessário saber o que se passava na vida de seu amado.
Então, aquela voz, aquela voz que estava ao fundo e desponta, furiosa e ao mesmo tempo melancólica, a frente das atenções e lê uma carta, em voz alta, como se tudo que era dito ali, não se destinasse apenas a quem realmente interessava, mas a todos nós. E havia aquele sentimento de dor, de saudade. Cazuza, naquele momento em que o dia estava nascendo feliz. E toda aquela saudade. E aí, o silêncio.
O pássaro do homem ainda desafinava nas mesmas notas da música, ele se esforçava de todas as formas para que a ave aprendesse, mas era complicado. Aquele seria, apesar de falhar na domesticação vocal de seu pássaro, um novo dia, um dia diferente. Ele começaria um novo emprego. Era visível a excitação misturada com nervosismo, toda aquela vontade de parecer até melhor do que era, de causar a melhor impressão possível. Daquilo dependia a sua estadia naquela cidade estranha, daquela postura dependia seu futuro e seu subsistência. E ele conseguiria. Ele era ótimo, formado em administração, com curso médio em técnico contábil, e ainda, com um curso de datilografia a distância.
Em algum outro lugar, um homem começava sua manhã desenhando. Sempre fora bom em desenho, mas não podia viver de um sonho, era preciso colocar os pés no chão, e com os pés no chão daquele pequeno quarto de pensão, ele terminou de se arrumar para começar um novo emprego, numa repartição.
Jamais pensaram os dois, que aquele dia seria um dia que traria tantas mudanças na vida dos dois.
No começo, apenas olhares estranhos, cumprimentos educados, e aqueles assuntos necessários a evolução do trabalho que eles, afinal, elaboravam em conjunto. E também, um café, de vez em quando. Único momento de leve descontração.
Como em vários tipos de relações que se iniciam obliquamente, o motivo que começou a uní-los foi algo totalmente inesperado: cinema. Um gosto cinematográfico em comum, atores, diretores, todos aqueles conhecimentos os fizeram perceber um no outro algo que poderia começar a preencher suas solidões.
E a partir daí, era impossível saber o que se passava na cabeça de ambos. Havia uma falta, um sentimento que era difícil de expôr. Mas havia, ele estava ali, presente, marcando como ferro a alma daqueles homens tão sozinhos.
Certa vez, pelo falecimento da mãe de um deles, passaram uma semana distantes. Uma semana sem nenhum contato. Aquele que continuou trabalhando sentia como se o tempo não passasse, aquele vazio era impossível de preencher.
E quando voltou, ah, aquela ligação, aquela voz, e aquele chamado: Vem, vem aqui. E aquele abraço. Um misto de fúria, de paixão, de saudade, de tristeza, de vazio. De amor, verdadeiro amor.
A partir daí, dessa demonstração quieta e real de um sentimento que já fazia parte de todo o ser, não importa o que se passa na cabeça das pessoas: dois amigos, dois homens carentes que sentiam falta de alguém, dois amantes, dois veados promíscuos. Não importava o emprego, não importava a repartição,não importavam os olhares na janela. O que realmente importava ali, naquele momento, foi que existia algo a que realmente se apegar, a que realmente cuidar, se importar: que havia alguém, que acima de qualquer banalidade, preenchia todo e qualquer vazio, apenas por existir. E assim, aqueles dois seguiriam, sem mais precisar de ninguém, pois eles tinham um ao outro, e assim que teria que ser.

Acho que é quase impossível descrever com palavras a sensação de assistir a peça Aqueles Dois, baseado no conto homôniomo de Caio Fernando Abreu. Todos os momentos, todos as sensações, toda a ansiedade, aquilo tudo que está em cena tão a flor da pele. Tentei apenas expressar o sentimento final dos dois personagens, o que, penso eu, eles realmente sentiam. Nâo é tesão, não é amizade, não é carinho. É algo que transcende isso tudo, e você consegue saber se você realmente sente. Ou, se você assiste a peça Aqueles Dois, da Companhia Luna Lunera.
Serei eternamente grato por tão maravilhosa experiência.
Para mais informações, @cialunalunera Site Oficial Cia. Luna Lunera.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

The Point of No Return; Ou tudo aquilo que não tem razão de ser

Aquele olhar. Uma pena que sou desprovido de compaixão. Mas ainda assim, eu jamais esqueceria aquele olhar.
Aqueles olhos que pediam por carinho, que pediam por uma chance, que demonstravam toda a vontade de tocar minha pele de novo, e de, por um curto espaço de tempo, poder ter a sensação de que tudo em mim, pertencia a ele.
Chegava a ser incômodo, constrangedor, manter aquela conversa enquanto os olhos analisavam cada expressão de meu rosto, cada movimento do meu corpo, cada vez que meus lábios se abriam para proferir uma palavra. Eu não me sentia bem em ser desejado.
É interessante dizer isso, pois normalmente nos sentimos bem em ver que alguém nós olha com desejo, com interesse. Nos sentimos passíveis de sermos amados, de sermos descobertos por alguém, e assim, nos dando uma chance de amar e descobrir outro alguém. Aí reside a diferença.
Tudo que há nestes olhos, e no corpo a qual ele faz parte, e na pele que cobre esse corpo, e principalmente, nos jeitos, trejeitos, manias e confusões que fazem parte desta pessoa, eu conheço. Conheço mais do que desejaria, conheço mais do que deveria. E nada nisso me atrai. Nada nisso me faz pensar em voltar e viver algo novamente, nem que seja um abraço prolongado e um beijo no rosto. Não existe ligação sentimental entre estes dois corpos. Não adianta tentar.
Aquele olhar. E não é por ser apenas desprovido de compaixão que eu não o retribuo com algum tipo de carinho, e sim com repulsa. É também por respeitar seu sentimento. Sim, respeitá-lo. Afinal de contas, seria muito fácil eu usar deste amor para satisfazer todos os meus desejos carnais, ir contra o que eu sinto e apenas usar teu corpo como poderia usar o de qualquer outra pessoa, mas prefiro agir com frieza e desprezo para que possas, enfim, destinar estes olhos para outro alguém, pois, por mais fundo que você tente olhar, mesmo dentro dos meus olhos, nos confins de minha alma, você poderá encontrar de tudo, mas nunca um lugar onde você possa repousar o seu amor.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Le Temps Perdu; E todos os resultados de uma escolha errada

Havia tanto, tanto tempo. Pra que mexer nisso de novo? Sempre ouviu dizer que, quanto mais você mexe, mais fede, e ainda, costumava dizer isso para todas as pessoas que pensavam em voltar a tentar algo que já havia sido encerrado. Não importa a forma do fim, certa, errada, com discussões, com paz, com distanciamento. Não importa. Se acabou, era pra ser. E não me venha com essa filosofia de música do Raimundos, dizendo que "se ainda não deu certo é porque não chegou ao fim". Seja real: Não chegou ao fim porque não deu certo. E por mais que seja fácil falar, para ele era óbvio que era muito difícil de cumprir. Chegou, uma vez, a quase discutir com um amigo, por este motivo. Era bom com palavras. Péssimo com atitudes.
Então, pra que? Por que atendeu àquela ligação, por que aceitou a reaproximação? Por que foi encontrá-lo?
Claro, havia a curiosidade. Nunca havia olhado nos olhos daquele que o fez perder a cabeça, que o fez entregar o coração, que o fez quase ficar calvo de saudades, tristeza, preocupação, e decpeção. Nunca havia visto realmente quem ele era. Apenas sabia que o outro existia, em algum lugar. Uma cidade próxima. Tão próximo, porém tão distante. Não poderia perder a oportunidade.
Saiu em disparada, com o coração na boca, temendo perder o primeiro ônibus, a primeira carona, o primeiro pé-de-vento que o levasse de forma mais rápida possível até o lugar onde se veriam. Pela primeira vez, depois de tantos anos.
Havia sido uma história muito rápida, a dos dois, porém intensa. Uma amizade em comum, na verdade, uma paixão em comum, que acabou ficando em segundo plano quando ambos descobriram que tinham tanto em comum, e que um supria as faltas, vontades e desejos do outro, mesmo distantes. Eles sabiam que um era o melhor para o outro. E essa história tão intensa, durou apenas duas semanas, e nada mais.
Ele não se lembrava mais que havia um sentimento, até ouvir a voz do outro do lado do telefone, quase 3 anos depois, e dizer que, desta vez, ele estaria em sua cidade, com toda a certeza que poderia existir, e que eles iriam se ver. Ao telefone, tentou manter o controle na voz, enquanto sorria sem parar, durante todo o dia.
E então, após tomar um transporte público totalmente cheio, ele desceu no lugar certo. Chegando em frente ao local combinado, ligou para o outro, avisando que estava a frente, esperando-o. Então, ele veio. E ali estava, a sua frente, sendo aquele que via em fotos, vídeos, mas com uma pequena diferença: tão mais bonito! Mas, como toda a história que deveria ter ficado no passado, aqui não seria diferente.
Ouve um primeiro contato, um primeiro olhar, e toda aquela chama que queimou entre os dois. Aquela vontade de abraçar, de dizer que nunca esqueceu. Mas, as palavras advindas do encontro mostraram que a vida de ambos seguiu caminhos que, agora, não condiziam mais com as vontades, os anseios. Com as lembranças daquele quase casal. E então, todas as boas lembranças foram substituídas por um encontro, frustrado.
Ele voltou para sua casa, e assim que fechou a porta, forçou sua cabeça contra a parede por várias vezes. Mas nenhuma dor física o faria esquecer a dor que sentia, de ter destruído toda uma história por algo que, era óbvio, daria errado.
O que passou, passou, e não tem como voltar. É possível reconstruir uma janela, mas sempre serão vistas as rachaduras. Ou você troca o vidro, ou apenas guarda os cacos, como uma bela lembrança do que olhou através deles.

sábado, 10 de abril de 2010

Retornando ao Quarto Cinza; Ou o que reside dentro de cada um de nós

Releitura do meu texto O Quarto Cinza; Ou qualquer outro lugar dentro de cada um de nós; escrito por Ricardo Michelli e postado em seu fotolog no dia 04/04/2010. Releitura permitida pelo autor original, e completamente aprovada. Condiz muito com os meus atuais pensamentos sobre mim, sobre nós, sobre o todo. E sobre todos os mundos. Ou simplesmente sobre o mundo que levamos em nós mesmos.

Eu nunca tive medo das pessoas, sempre temi o demônio que existe dentro de cada uma delas. Por mais parecido que um dia seja com o outro, nunca faremos as coisas da mesma forma.

Quando eu quis te conhecer a idéia foi de não pensar como seria e simplesmente apostar todas as fichas na mesa.
Não esperava que de repente muita coisa ganhasse vida novamente e me trouxesse a necessidade de ir para o inferno e tratar de negócios.

Então me perguntará: que negócios se trata no inferno?
Simples: em relação ao demônio que guardamos dentro de nós, existe uma espécie de manual da boa conduta que se resume na seguinte expressão "Deus cria e o Diabo molda aos seus olhos". Então eu fui e rapidamente retornei.

A sensação de voltar do inferno?
No mínimo intrigante. eles de fato sabem como fazer negociatas por lá, acredite, conseguir um visto de permanência neste plano não é tão complicado assim, o único requisito é que você tenha coragem, crença nos seus próprios esforços e cumpra cada uma das tarefas que assumir pelo caminho traçado.

Enquanto eu fui, negociei, me desfoquei e quase te perdi, simplesmente criei uma redoma onde você e a melhor parte de mim pudessem ficar em segurança, sem que nada e nem ninguém contaminasse o que existia ali.

Não me esqueci em momento algum de que o tempo passa, e que o mundo jamais espera, semplesmente abandona quem fica parado, para trás. A inércia infelizmente não condiz com a existência.

Ao olhar para o lado eu vejo que nem sempre as coisas são como se planeja e quem lhe pede a provação não sabe ao menos a direção.

Nunca sentiremos novamente o que sentimos um pelo outro, mesmo que busquemos cicatrizar os ferimentos ou então viver em uma redoma para simplesmente não ganhar uma nova cicatriz e cultivar algo já existente.

Pode ser quem sabe a solução de quem já se declara o perdedor para que um jogo onde não deveria sair um vencedor.

Ao som de tal ciranda é preciso pensar naquilo que te prende, no desatar das correntes, o quitar das dívidas e realizar negociatas com as pendências, antes que tudo o que você se lembra e preserva se perca no fogo e queime, no fogo que tudo queima, o fogo do tal tempo, que apaga, que cicatriza, e que, principalmente, esquece, faz e ajuda esquecer.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Boo'ya Moon, País das Maravilhas, Territórios; Ou qualquer outro lugar no avesso do mundo.

E mais uma vez, ele estava em frente ao espelho. Mesmo com todo o meu medo dessa superfície límpida, que reflete tudo que se coloca em sua frente, ele estava ali, sozinho no recinto, sozinho em sua casa, olhando bem para os olhos da pessoa a sua frente. Olhando dentro de seus olhos.
Seriam mesmo seus próprios olhos? Ele acreditava que não. E sabia que não estava ficando louco, por mais que os outros digam que as suas palavras, suas teorias, não façam o menor sentido. Ele sabia que ali, do outro lado, residia algo. Residia alguém. Existia um outro lado.
Desde muito novo ele sentia algo estranho vindo não só de espelhos, mas de qualquer outro objeto que possa refletir sua imagem, como se estivesse sendo profundamente observado, como uma janela que levava para o desconhecido. Um desconhecido que, ao mesmo tempo que ele temia, ele admirava, ele desejava, ele gostaria de alcançar. Mas não sabia como.
Certa vez, ele teve uma visão desse outro lado, tão clara, tão pura, tão filha-da-putamente real, que ele realmente acreditou ter atravessado.

Ele tinha 15 anos, um adolescente cheio de revoltas, incertezas, e principalmente, cheio de medos. Indeciso sobre tudo, sem saber que rumo tomar, e sem saber como deixou de ser o garoto mais adorado da escola em que estudava para um quase delinquente juvenil sem rumo e sem limites. Um jovem que tinha pavor de ser acima do peso, tinha medo da reação dos demais a sua orientação sexual, e que se escondia em uma máscara de raiva, rancor e revolta para guardar para si o garoto amedrontado, carente, e necessitando de muita ajuda.
Estava sozinho em casa, e sentia aquela onda de horror chegando cada vez mais perto. Por várias vezes, ele a sentiu próxima, como um fardo, um peso caindo sobre suas costas, e todas aquelas vozes em sua cabeça, apontando todos os seus erros, e todos os erros que cometia tentando consertar os erros anteriores. No fundo, era como se ele ouvisse vozes tenebrosas cantando em seu ouvido, como se estivesse ouvindo Attack of the Killerbirds de Emilie Simon, aquele som de suspense e medo, e ele não podia fazer nada para impedir. Tentava gritar, pedir para pararem, mas sua voz não saía. Ele queria fazer parar, ele não aguentava mais. Ele se jogou no chão, sentou-se, encostou suas costas na cama, abraçou suas pernas e colocou sua cabeça entre os joelhos, e não vendo diferença nenhuma, ele começou a bater na sua própria cabeça, que agora, além de ter todos aqueles sons dentro dela, ainda sentia um início de enxaqueca, que só tenderia a piorar com os ataques que ele causava a si mesmo. Então, uma luz passou perante seus olhos, e, como que entrando num estado de catatonia, ele ergueu sua cabeça rapidamente, olhando fixamente, com os olhos muito abertos, para a frente. Mas o que ele via não era a grande parede de madeira que dividia seu quarto com o quarto ao lado. Não, ele via um lugar. Quase como um deserto, não fosse pela grande quantidade de água que tocava o litoral daquele lugar. Um deserto de areia preta, e a água, de um verde, parecendo água suja, mas ele sabia, ele sentia, que aquela era a mais pura água que já teria visto em sua vida. E percebeu também, que não conseguia se mover. E ali, ali naquele lugar, ele percebeu então, que não estava sozinho. Percebeu-se a uma distância considerável da praia, e vindo em sua direção, várias pessoas, pessoas que ele poderia ter certeza que conhecia, vindo em sua direção. E todas falavam, ao mesmo tempo, davam conselhos, criticavam, repudiavam e amavam. As vozes. Uivando como lobos, oh, lobos. Todas as vozes pertenciam ao outro lado. Mas tudo acabou muito rápido. Quando acordou, ele se viu com uma camisola branca, com fechos de velcro, e num lugar desconhecido, um quarto tão branco quanto a camisola que utilizava. A única certeza que ele tinha, era que tinha voltado ao seu lado da realidade. Entraram pessoas, também de branco, em seu quarto, e perguntaram a ele se estava tudo bem. Duas mulheres, e um homem. O homem, com cabelos grisalhos, disse a ele que ele tinha entrado em estado de choque causado por um excesso de estresse e outras causas psicofisiológicas. Ele abriu a boca para dizer que não, mas achou que seria pior. Se dissesse o que realmente aconteceu, temia ter que ficar mais tempo naquele lugar, que agora ele sabia muito bem aonde era. E não era nada bom, ainda pior quando comparado ao lugar aonde esteve.

Ele estava perante ao espelho, e depois daquela sua experiência, ele nunca mais teve nenhuma experiência do outro lado. Até poucos dias antes desse momento em frente ao espelho.
Foi numa manhã, uma manhã qualquer, sendo acordado para ir trabalhar, e naturalmente, levantando de mau humor, como qualquer outra manhã ordinária. Demorou alguns minutos para se levantar da cama, então seu novamente foi altamente (e irritamente) anunciada, e então, colocou seus pés no chão. Sempre o pé esquerdo primeiro, apenas pra ir contra a grande maioria que dizia ter que acordar de pé direito. Ele não precisava daquilo, obrigado.
Foi ao banheiro, que ficava ao lado de seu quarto, fez suas necessidades fisiológicas, e olhou para sua própria imagem ao espelho. Barba por fazer, cabelo desgrenhado, olhos pesados e vermelhos, nariz irritado. Ele nunca namoraria consigo mesmo naquele estado, nunca na vida. Pensando isso, abriu um sorriso amarelo para si mesmo. Mas sua imagem não respondeu ao sorriso. Permaneceu séria, impassível, e encrespou a sobrancelha. Seguido disso, veio uma breve luz, e então, tudo voltou ao normal. Ele lavou o rosto por muitas vezes, assustado, respirando rapidamente, sentindo lágrimas nos olhos, e todo seu corpo tremendo. Pela segunda vez, em 4 anos, ele teve uma visão e uma prova do outro lado. E não sabia até que ponto isso era bom ou ruim.
E apesar de todo seu medo, lá estava ele, novamente. De uma forma que ele não sabia explicar, ele tinha certeza que ele precisava tentar, ele queria tentar um contato, uma imagem, uma porta de passagem. Queria mergulhar de cabeça na toca do coelho. Mas não sabia como, e esperava que aquele seu eu que não achou graça da sua piada sobre o auto-namoro, estivesse disposta a ajudá-lo, ou quem sabe, disposta a se tornar um único ser com ele. Não importava a maneira, ele queria se entregar. Pois, se aquele era o avesso do mundo, ou uma outra forma de viver, ele estava disposto a tentar, a tomar daquela água tão verde, que ele sabia, tem o poder de curar de toda a dor, e viver com aquelas pessoas, aquelas vozes, que mesmo tão atormentadoras, tão duras, faziam o inverso do mundo em que ele vivia.
Aquelas criaturas avesso não criticavam as escuras, não discutiam aos sussurros, não condenavam pelas costas, não atormentavam a distância. Elas estavam ali, prontas para enfrentar o mundo. Prontos para enfrentar a ele, e era isso que ele sempre procurou. Elas eram, acima de tudo, reais e realistas.
Chegando então, a realidade e ao realismo de cada um deles, chega-se ao motivo de ele querer tanto atravessar. Não importava se ele fosse ficar passando anos encarando aquela água sem motivo algum, ou se iria se tornar apenas mais uma voz na cabeça de alguém, o que importava era, que tudo era verdadeiro. Não, não. Tudo é construído sobre verdades.
O que basta saber é, quem é o avesso, e quem é o direito. Quem é o certo, quem é o real. Quem é o original, e quem é a cópia mal feita.
Ele já havia feito sua escolha. Agora, era só conquistar.


Nota do Autor: Tanto o título, quanto o texto em si, faz menção a 3 grandes obras literárias: Love - A História de Lisey, de Stephen King; O Talismã, de Stephen King e Peter Straub; Alice no País das Maravilhas de Lewis Caroll.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Memórias do Indizível V: Que Assim Seja

Esta é a última Memória do Indizível. O último texto do blog que eu divido/dividia com Janaina Lellis. Quem sabe um dia eu volte até lá. Quem sabe um dia nós voltaremos. Por enquanto, são só memórias. De coisas, que nunca foram ditas. Que assim seja.

No silêncio de uma noite sem estrelas, eu me pego pensando em nada. Absolutamente nada. Se formou um silêncio em minha cabeça, que eu nunca soube o que é. Um vazio inexplicável, justo eu, que sempre sou tão ocupado, tão preocupado, tão atarefado. Trabalhar, a minha vida se resume a isso. Qualquer relação afetiva ou social, eu deixei pra lá. Sou um rapaz ainda, jovem, tenho que fazer a minha vida antes de pensar nos outros. Primeiro eu, primeiro eu. Sempre.
E de repente, nada. Absolutamente nada. Todos os sons da cidade pararam, as luzes se apagaram, e a minha cabeça parou de pensar no que eu pensava.
Eu já nem me lembro mais. Uma reunião a ser presidida? Um projeto a ser posto em prática? Um relatório a ser concluído? Contas a serem pagas? Fornecedores a serem contatados? Eu nem me lembro mais, o que é que está havendo? Eu fecho os olhos, e agora tudo que vejo é minha vida passando.
As amizades da infância e da adolescência, as brincadeiras. Aah, era tão bom subir naquele pessegueiro... Mas na época eu tinha tempo para isso, agora não há mais tempo. E os namoricos, os primeiros casinhos e paqueras também passaram pela minha cabeça. Nossa, e o simples fato de encostarmos nossos lábios já era encantador... ERA, eu disse bem, pois nesse mundo de hoje em dia, não existe espaço para inocência.
E tudo isso é passado, eu tenho que parar com isso. Então, vou e me deito. Dormir, mesmo que seja perca de tempo, é melhor do que ficar nessa escuridão, sem energia, e relembrando coisas que não voltam mais.

Acordo, não sei quantas horas depois, é impossível saber. Sei que é dia pois a luz do sol já atravessa as persianas, mas o relógio parou de funcionar. E pelo que parece, a cidade continua adormecida. Todos os barulhos que eu sempre pude ouvir atravessando a janela e me acordando de tempos em tempos durante meu curto sono, essa noite parecem ter silenciado totalmente.
E quando me levanto, noto também que a energia ainda não voltou. Ótimo, muito bom, muito me interessa como vou trabalhar. Me lavo, me visto, rapidamente, pois tenho medo de estar atrasado, afinal de contas, não sei que horas são. Está tudo enlouquecido.
O elevador, para minha sorte, também não funciona. Descer 10 andares de escada, que alegria. Chego a portaria, não há ninguém lá. Moradores saindo para trabalhar, porteiro cuidando da movimentação, nada. Será que aconteceu algo e só eu não fiquei sabendo?
Vou até o estacionamento, e então descubro que o carro também não funciona, apenas para melhorar tudo que já está me acontecendo. Descido então sair, ir até um ponto de onibus ou encontrar um taxi, algum meio de chegar ao trabalho.
Quando chego à rua, vejo tudo parado. Sem carros nas ruas, sem mendigos nos bancos, sem cachorros nas calçadas, sem pessoas preenchendo o vazio do lugar. Sem nada. Tudo parado. Que tipo de jogo é aquele?
Então, eu sinto toda minha vida passando por mim. Será que eu morri?
Fecho os olhos, e vejo novamente o mesmo de ontem, a infância, a adolescência, todos os momentos bons que eu tive, e que eu havia esquecido... havia deixado de lado para alimentar minha ganância, pois eu vi exatamente o momento em que me perdi, e dexei de viver minha vida para viver meus desejos. E de tanto pedir para estar sozinho, para viver minha vida sem nada nem ninguém para me atrapalhar, parece que agora consegui realizar o meu desejo.
O mundo é meu, e sendo só meu, ele passa a não valer nada.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Páscoa com Sabor de Chocolate Amargo


Domingos, normalmente, são dias tediosos. E também um pouco deprimentes, com aquele clima insuportável de 'segunda-feira-está-chegando' que irrita qualquer membro do proletariado. Também, normalmente, domingos são dias onde ninguém faz nada fora do normal, apenas se descansa, faz algo mais caseiro, afinal de contas, amanhã, será outro dia (de inferno, na maioria das vezes). Porém, em algumas ocasiões especiais, existem reuniões, encontros, churrascos descontraídos (ou não), e existem também, os almoços de família.
Sim, aqueles almoços onde todo mundo se reúne, todo mundo sorri, se abraça, como se realmente mantivessem contato, sendo que a última vez que se viram e se falaram e se importaram uns com os outros, foi justamente no almoço de família anterior, que ocorreu meses atrás. Pois é, tanto carinho, afeto e dedicação ao próprio sangue.
Porém, em algumas famílias em especial, almoços de família são evitados, pois são famosos por eventos marcantes, que tornam o clima da reunião, que já não é tão leve assim, ainda mais pesado.
Tudo caminhava na normalidade. A páscoa seria comemorada, neste ano, na casa da avó, uma senhora que estava preste a chegar aos 80 anos, e que tinha mais vivacidade que seus 7 filhos juntos. Estatura baixa, pele surrada do sol que tomou por anos enquanto trabalhava na lavoura, poucos cabelos, totalmente desarrumados e pintados de castanho escuro, e com uma feição no rosto que escondia completamente sua personalidade: um rosto angelical, típica Dona Benta, mas na verdade, era geniosa, raivosa, vingativa.
Chegaram ele e sua tia na casa, já haviam pessoas lá. Gabriel, bom, já sabia como seria a recepção dos familiares, agora que todos na casa sabiam sobre sua decisão universitária, e orientação sexual. Numa família tradicional italiana, ele sabia que todos os olhares caíriam para ele, sua tão odiada franja comprida, e seu estilo visto aos olhos de todos como estranho e espalhafatoso, e agora, ex-universitário, e gay.
Chegando lá, ele e sua tia Alair, já estavam presentes dois tios, uma tia, três primos, dois deles com suas respectivas (insossas) esposas, uma prima com o marido e duas filhas, e claro, a amada, idolatrada (não salve, não salve) anfitriã.
E, quase como num deja vu perfeitamente estruturado, assim que ele cruzou o portão, todos os olhos caíram sobre ele. Por poucos segundos, um silêncio constrangedor, e olhares que percorriam desde seu tênis All Star xadrez até o último fio de seu cabelo organizadamente bagunçado e cobrindo grande parte de sua (protuberante) testa. Poucos segundos, pois então todos saíram de seus respectivos transes crítico-demoníacos, recolocaram suas máscaras de harmonia-de-reunião-(hipócrita)-de-família. Sorrisos para todos os lados, abraços, e desejos, mais desejos - feliz páscoa, feliz páscoa, espero que entrem muitos ovos na sua cesta - e aí por diante. Uma família unida, feliz, onde todos se amam. Um estado utópico tocante.
Gabriel, com sua cabeça a ponto de estourar por um ataque extremamente indesejado e estupidamente forte de sua migrânea, deita-se no sofá da sala, fecha a porta, e mesmo assim escuta a conversa (os berros, a disputa por atenção, todo aquele falatório sem sentido sobre alguma doença ou sobre a vida de alguém do passado) de seus parentes. E vejo este o momento propício para uma observação: Italianos deveriam vir com botão de volume. Falam alto mesmo quando estão sussurrando, é algo incrível. E extremamente irritante quando se tem a sensação de ter uma bateria de escola de samba tocando, privilegiadamente, só pra você, dentro do seu crânio.
Passados alguns minutos, chega sua mãe, sua irmã, e seu padrasto. Padrasto esse que por sinal está de boné. Gabriel se questiona sempre daonde ele tira aqueles bonés ridículos (Estilizados com nomes de lojas de materiais de construção, mercados, bancos, ou de algum ponto turístico extremamente irrelevante e sem graça país a fora), e também, daonde ele tira coragem para sair em público com aquilo. Padrasto esse que, também, está de aniversário, no dia da Páscoa. Está de anos em festa no dia em que as pessoas querem levar vários ovos. Agora, além de desejos de feliz páscoa, são vários e vários desejos de felicidades, muitos anos de vida, enfim. Momento clichê, totalmente previsível.
O Padrasto e a mãe vão em direção a cozinha, aonde a anfitriã prepara o almoço, que por sinal, parece estar sendo preparado para o triplo de pessoas que estão no local. Outra coisa incompreensível sobre italianos é o exagero nas comidas. Deve ser complicado contar quantas pessoas estão no lugar, e ter noção de que está em excesso. E ainda mais, sendo preparado por esta pessoa, o único pensamento que se pode ter é do clipe de Telephone, da Lady GaGa. Sabe, aquele momento da cozinha? Então. O medo existe, e quem tem orifício anal, tem medo, já diriam os antigos. A anfitriã então, interrompe o preparo do seu tão esperado banquete para cumprimentar seu genro e sua filha caçula, e então entrega um pacote para o genro. Um presente, tão amável sogra.
Mas claro, já era de se esperar que ela repetiria um ato que já aconteceu muitas e muitas vezes. Só não seria crível que sua audácia e capacidade de atuação teria aumentado drasticamente com o tempo. Alguns diriam que isso é a idade, que ela apenas está senil. Mas não, podem crer que não. Ela tem total consciência de seus atos, o que é extremamente triste.
Vilmar, o padrasto e genro aniversariante, entrega o pacote a sua esposa, para que ela abra o presente recebido de sua sogra favorita, e única (até aonde se tem conhecimento). Ciza, a mãe, e esposa do aniversariante. abre o pacote, e então tira uma camisa. Até aí, para um advogado, que usa camisas todos os dias, seria um presente extremamente útil, e digno de um agradecimento. Seria, se não fosse o detalhe de que a camisa era usada, estava amassada e com o colarinho manchado, a etiqueta totalmente lavada e esgaçada. Velha. Repassando algo que não tem mais utilidade, afinal de contas, o segundo marido da anfitriã fora dar um passeio de mãos dadas com Perséfone no mundo inferior.
Ciza olha com desdém para o presente, olhando bem para os dentes do cavalo dado, e então, dispara:
- Essa camisa é velha. Olha, está toda amassada! O colarinho todo manchado, a etiqueta mostra que isso aqui já foi lavado milhares de vezes. Que tipo de presente é esse?
- Claro que não Ciza, que absurdo você falar esse tipo de coisa! Eu sempre dou do bom e do melhor pra minha família!
- Ah, tá bem. Não é a primeira vez que a senhora faz isso, eu que não vou levar isso pra minha casa.
Dizendo isso, joga a camisa em cima da mesa da cozinha, e vira as costas. Nesse momento, foi como se a lua cheia passasse pelos olhos do lobisomem, pois a anfitriã ficou raivosa. Começou a bufar e resmungar, como se amaldiçoando todas as gerações da filha caçula. E claro, que sempre que o lobisomem aparece, o que ele procura? Uma vítima. E sempre tem um criatura tola que está passando perto do habitat da besta. Exatamente.
Camila, a filha mais velha da prima de Gabriel (com 8 anos de idade), presente no macabro recinto da besta, tem uma educação inexplicável. Ou melhor, a falta dela é inexplicável. Sua falta de limites é incrível, vive como se tudo fosse seu, e é seu agora, não existe espera ou respeito em seu mundo. E neste dia, em especial, ela agiu no lugar errado, na hora errado.
No centro da sala de jantar do recinto da besta, há uma mesa de madeira, de 10 lugares. Cadeiras estofadas, feitas da mesma madeira escura da mesa, com entalhes na parte superior do encosto. Sobre a mesa, uma toalha branca, estendida por toda sua extensão, e sobre esta, pratos, talheres e copos empilhados, esperando para serem distríbuidos a frente de cada um dos assentos, para depois servirem de recipiente da comida a ser servida pela anfitriã.
Nesse momento, Camila passa pelo recinto, mal sabendo que no cômodo ao lado, na cozinha, está residindo uma criatura que ela não gostaria de enfrentar: sua bisavó à beira de um ataque de nervos. Olhando então para aquelas louças organizadamente empilhadas sobre a mesa, sua maior vontade foi de colocar suas pequenas mãos juvenis e descontroladas sobre elas, e dispor da maneira que bem entendesse. Não que elas estivessem fora de ordem, pois já foi dito que estavam organizadas, mas por um simples detalhe: a disposição não tinha sido obra dela, e ela, no seu mundo particular, é quem dizia como algo fica ou não fica colocado em algum lugar. Que assim seja.
Ela estende a mão para tocar no primeiro prato, mas para seu azar e sorte das louças, a anfitriã passa justamente nesse momento pela porta que divide a cozinha e a sala de jantar. Vendo a pequena criatura esticando seu corpo para alcançar seus pertences, a "lobisanfitriã" que está espumando e amaldiçoando cada um dos fios de cabelo de sua filha caçula, coloca seus olhos vermelhos de fúria sobre a criança, e esbraveja:
- SUA CRIANÇA DESCONTROLADA, O QUE VOCÊ PENSA QUE VAI FAZER? ATÉ PARECE SUA AVÓ, TOTALMENTE SEM LIMITES ACHANDO QUE PODE PEGAR O QUE É DOS OUTROS ASSIM DE QUALQUER JEITO! NÃO MEXA NAS MINHAS LOUÇAS, VOCÊ VAI QUEBRÁ-LAS, SUA DESCUIDADA! SAIA JÁ DAÍ, AGORA!
Primeiro, Camila paraliza perante a besta em surto, então, vira as costas, e chorando descontroladamente, corre em direção a algum porto seguro. O primeiro encontrado, é sua avó, uma das filhas da anfitriã, Adelsa. Ela olha para avó, e chorando, conta todo o episódio, entre um soluço e outro. Adelsa fica séria, e chega então para sua filha, e conta o que aconteceu. Graciela, a mãe de Camila e filha de Adelsa, respondendo a seus instintos maternais pelo menos por uma vez, levanta-se e vai tirar satisfações com a anfitriã, sua avó.
- A SENHORA É LOUCA? GRITAR ASSIM COM A MINHA FILHA, FALAR MAL DA MINHA MÃE, SENDO QUE NENHUMA DAS DUAS FEZ NADA PRA VOCÊ?
- SUA FILHA ESTÁ PENSANDO O QUE? QUE MINHAS LOUÇAS SÃO BRINQUEDOS DELA PARA ELA ACHAR QUE VAI POR A MÃO? ELA IRIA QUEBRAR TUDO!
- ELA NÃO FEZ NADA, NÃO FEZ! A SENHORA É LOUCA, TOTALMENTE LOUCA!
Graciela, que é branca como giz, estava completamente vermelha, até a raiz dos seus cabelos. Olha para a mãe, chama as duas filhas, e anuncia que está indo embora. Não pretende ficar no mesmo lugar que a insana anfitriã, que desrespeitou sua filha. Reúne seus pertences, pega as filhas e sai pelo pequeno portão cinza, sem se despedir de ninguém.
Começam então os cochichos. É interessante que mesmo em lugares com poucas pessoas, as fofocas sempre acabam distorcidas. Já se dizia em agressão física, pratos quebrados, rostos estapeados. Só faltava o sangue e a morte pra se ter uma tragédia grega pascal. Mas, como era necessário manter o teatro vivo, afinal de contas "the show must go on", todos esqueceram em poucos segundos o acontecido. E todos voltaram a falar de seus problemas, e dinheiro (ou a falta dele), de como os filhos são e não são, ou seja, nunca muda, nunca vai mudar.
Depois de tanta conversa jogada fora (no sentido literal de jogar fora), era chegada a hora da utilização de suas bocas para outro fim: alimentar. A anfitriã dispôs todos os (exagerados e demasiados) pratos sobre a mesa, e chamou a família para o almoço.
Gabriel chegou a mesa e logo foi sentando-se ao lado de sua irmã de 6 anos, Luiza, que solicitou a companhia do irmão a mesa. Então, Rafael, um dos primos, 28 anos, franzino, com marcas de acne na face que não saíriam nunca dali, para auxiliarem eternamente na recordação dos furúnculos que possuía na adolescência, e muito reservado, só usando sua voz para fazer comentários desnecessários e dar idéias indesejáveis. O que não foi diferente desta vez.
- Vamos rezar um pai nosso antes de comer?
- Alguém deve estar brincando comigo que eu vou ter que levantar! - ironiza Gabriel, olhando com ânsia para o primo, que responde com um sorriso amarelo na sua face vale-das-cicatrizes.
- Claro que vai - responde animadamente Vilmar, com o seu tão patético boné do Marco das 3 Fronteiras sobre sua cabeça loira.
Gabriel, à contragosto, levanta da mesa e vai atrás de sua mãe, abraçando-a. Gabriel e a mãe se dispuseram estrategicamente perto do corredor que leva ao banheiro da casa, como que prevendo que alguma situação durante a oração os obrigaria a ir ao cômodo. Seria quase como uma disputa para ver quem chegaria primeiro, mas os dois estavam ali, a postos.
A anfitriã então iniciou a oração, sendo ela a única a fazê-la em voz alta, todos os outros ao redor da mesa apenas resmungando a oração que Jesus vos ensinou. Menos Gabriel, ele está em silêncio, apenas avaliando a situação, olhando por cima do cocuruto da mãe para todos os presentes, principalmente para a anfitriã, que parecia uma daquelas senhoras beatas figurantes de filmes que se passam no sertão, só faltando o véu na cabeça para parecer que tinha saído diretamente do elenco de apoio de algum filme de Guel Arraes. Chegando então quase ao final da oração, acontece o esperado por Gabriel e sua mãe. A situação que os faria disputar pelo banheiro. Não por alguma razão fisiológica, não. Por uma questão de educação. Não seria gentil rir da anfitriã enquanto ela comete um erro de português monstruoso durante o Padre Nosso:
- (...) Predoa nossas ofensa, assim como nóis preduemo quem nos ofende (...)
Gabriel solta sua mãe, e antes que ela mova um dos seus pés, ele dispara em direção ao banheiro, batendo a porta com força demais para passar despercebido pelos outros. Chegando lá, ele respira fundo, segurando-se para não rir, temendo que alguém escute. Lava o rosto, e volta a mesa. Estão todos já sentados, e quando ele volta, todos os olhares voltam a ele, assim como quando chegou. Além de ser um gay, alternativo demais para se enquadrar no berço da família, ex-universitário, ele acrescenta agora o fato de não respeitar a anfitriã. Para o inferno com respeito. Ele senta-se à mesa, começa a preparar seu prato, e acrescente uma nota mental para ser atribuída a suas aspirações de virada de ano:
Em 2011, eu não preciso de outra dose dessas. Eu sobrevivo a uma Páscoa em casa, sem esse teatro. Obrigado.

domingo, 4 de abril de 2010

Memórias do Indizível IV - Um Talvez Ser Humano, Um Quê de Cada um de Nós


Ele falava, falava, falava, mas não dizia nada. Dizia muito sem falar um A.
Expressava mas não significava. Contava mas não completava.
Tentava, mas não continuava. Vivia, mas não valia nada.
Falava, falava, falava. Mas nada acrescentava.
Todos olhavam para ele, a dizer: ele é um nada.
Observava tudo, e nada notava.
Queria tudo, mas nada conquistava.
Almejava a glória, e retornava a escória.
Não sabia se podia, mas sempre pôde saber que não tentaria descobrir se conseguiria.
Era a mistura de tudo, se mostrando com uma face de nada.
Era todo o querer, com aquele ar de jamais poder.
Era toda coragem voltando a ser o pior dos medos.
Toda a expressão de horror resumida em um sorriso bem aberto.
Era a contradição, com todo aquele jeito de uma única opinião.
Um amor tão forte, que o ódio consumia e se tornava dono.
A mais profunda era de caos, no tempo mais bonito de paz.
Um mar revolto cuja imagem lembre a de uma calmaria até então desconhecida.
A beleza mais feia explícita no rosto jovem mais velho que aqueles que vêem no mundo, jamais viram.
A decadência visível levando a uma ascendência imprescindível.
A crença de que o sobrenatural não seja nada mais do que o real.
A convicção de que a dor da morte é o início da alegria da vida.
Todo o caminho do fim, levando apenas novamente para o início.

Hora do Reconhecimento!



Bom, hoje, ao ler um comentário do meu blog, eu descubro que a Letícia, do blog A Questão É? me indicou para receber o selo acima mostrado, e também aí do lado, se você olhar bem!
Agradeço mesmo a ela, por saber que o que é colocado aqui, é lido e causou real interesse a alguém. Mesmo quem diz que não espera nada de ninguém, sempre gosta de receber um elogio, sempre gosta de saber que algo que faz, por menor que seja, é reconhecido. Então, eu realmente agradeço.

E agora, eu tenho então que seguir as regras impostas ao selo, e também as devem seguir as pessoas que forem indicadas aqui:
"Falar 7 coisas sobre si mesmo(a) e indicar 7 blogs para receber o selo"

Vou dispor as 7 coisas sobre mim em tópicos, tenho certeza que algumas coisas vão soar absurdas, mas eu não me importo. É o que eu sou, não?
  • Tenho medo de espelhos, alienígenas e palhaços;
  • Fiz 2 anos de faculdade de Direito e tranquei para seguir o meu sonho, que é Comunicação Social;
  • Só fui fiel a um namorado até hoje;
  • Sou extremamente fácil de tirar do sério;
  • Tenho alergia a tudo que você pode acreditar, minha rinite é daquela espécie bem premiada e nem um pouco seletiva;
  • Música pra mim é muito importante, escuto tudo, se duvidar, tenho até Kelly Key no meu HD;
  • Falo demais, falo dos outros, falo de coisas idiotas, o que importa é: eu sempre estarei falando.
Acho que foi né? Se eu ainda sei contar, tem 7 coisas ali, enfim.
Agora, é a hora de indicar, correto?
Então, aqui estão os queridos blog indicados a este selo.
Bom, blogs indicados, espero que gostem, assim como eu gostei de receber!
Agradeço novamente a Letícia pelo reconhecimento, realmente é muito válido!
Obrigado.

sábado, 3 de abril de 2010

O Quarto Cinza; Ou qualquer outro lugar dentro de cada um de nós.

Sabe quando, no silêncio do seu quarto, você sente estar sendo observado?
Como se alguém estivesse ali, cuidando de cada um dos seus atos, tentando perceber qualquer falha, qualquer deslize, para então vir e te punir?
Quando você mantem uma falsa posição de superioridade, mas sabe, no interior de si, que existe algo errado, algo incompleto, algo roubado?
Um sentimento, uma retribuição, um perdão, um medo, uma discussão.
Algo que você deixou para trás, e não teve a capacidade de olhar novamente, de juntar as peças e resolver da melhor forma possível.
Por mais que não haja ninguém aí, vigiando seus passos, esperando para te punir assim que a primeira lágrima escorrer do seu rosto, você sabe que tem algo a fazer, e não espere que alguém venha e amarre as cordas em seus braços, e, como um marionete em tamanho real, te movimente e te leve da forma mais fácil a solução.
Sem coragem, sem crença nos seus próprios esforços, é impossível que algo seja feito, das mais simples até as mais complicadas tarefas.
Lembre-se, também, que o tempo corre, e que o mundo não espera, ele abandona quem fica parado, para trás. Inércia não condiz com a existência.
Então, é preciso repensar aquilo que te faz sentir sempre preso, desatar as correntes, quitar as dívidas, resolver as pendências, antes que tudo que você se lembra seja algo que se perdeu no fogo, o fogo que tudo queima, o fogo do tempo, que apaga, que abandona, que cicatriza, e que, principalmente, esquece, e ajuda a esquecer.

domingo, 28 de março de 2010

Memórias do Indizível III - Consulta ao Abstrato

Em casa, então, eu fico em paz. Sozinho, olhando para as paredes e imaginando o que elas sentem, o que elas acham de cada um de nós. Sim, qual é a sensação de uma parede? Se ela é formada por átomos, ela também tem que sentir algo, ao menos o nosso toque, a movimentação elétrica formada entre a mão e ela mesmo, com certeza, ela sente.

Mentirei se disser que nunca tentei me comunicar com elas. Partindo do principio que tijolos são feitos de barro, de terra, que o cimento e o cal são retirados da natureza, indica que estão aqui a muito tempo, até antes de qualquer um de nós. E com sua idade, talvez, se soubessem falar, poderiam passar tanta experiência que talvez comovessem até o mais estúpido, insensível ou desinteressado. E talvez elas me compreendessem, e eu encontraria, então, alguém que realmente valesse a pena compartilhar a minha vida.

Impulsionado pelo tédio, fico a caminhar pelo pequeno apartamento (um cômodo de cada tipo: quarto, sala, cozinha, banheiro), cujo aluguel pago com o meu trabalho para uma empresa de publicidade. Não é um trabalho regular, sou apenas chamado para grandes projetos, quando eles precisam de um slogan grudento e de idéias malucas e atrativas para algum comercial capitalista. E assim, eu consigo tirar o meu dinheiro. Nunca me perguntaram se eu era formado, nunca quiseram saber nada sobre mim, apenas leram um dos meus contos, que um conhecido levou até eles, e acharam minha imaginação bastante aguçada, e assim, eu fui contratado. Nunca imaginei ver uma pessoa formada implorando alguma grande idéia de alguém que tinha desistido várias vezes inclusive de continuar a viver, porém, agora presencio isso regularmente.

Vou até a sala, talvez encontrar algo para fazer durante algum tempo. Na sala não estão muitas coisas, apenas um sofá velho, uma mesa redonda com 3 cadeiras, uma estante onde guardo várias das coisas que são realmente importantes para mim, e sobre ela um aparelho de som. Várias pessoas perguntam por que não possuo televisão. Enquanto você senta em frente à televisão para ver como andam os artistas, para saber quem casou e quem separou, para saber quem deu uma grande festa, enquanto você perde seu tempo com coisas inúteis, alguns tantos canais passam coisas muito mais importantes e que talvez poderiam acrescentar alguma coisa útil a sua cabeça vazia. E são exatamente estes canais, tão úteis, que são só disponíveis com televisões a cabo, serviço pelo qual o meu dinheiro não permite que eu pague. Ou seja, para que eu preciso de uma televisão? Para ver novelas?

Ainda na sala, começo a procurar meus porta CDs. Música é algo que realmente gosto, porém nunca tive talento nem para tocar triângulo. Escrevi alguns poemas quando mais novo, porém eu não sei manter tantas idéias em alguns versinhos. Mas admito que realmente música faz parte da minha vida, em vários momentos, com vários sentidos. Música para acabar com o silêncio. Música para acalmar. Música para extravasar as raivas. Música para lembrar alguém. Música para tentar esquecer. Música para ouvir quando se está com alguém. Música para se ouvir sozinho. Música para fazer festa. Música para destruir. Música sem conteúdo. Música revolucionária. Música para expressar os sentimentos que todos sentem, mas não sabem como demonstrar.

E, depois de retirar alguns quilos de bagunça da velha estante de compensado, eu encontro meus porta CDs. São exatamente 3, divididos por freqüência com que eu os ouço. O terceiro, menos importante, são alguns CDs comprados simplesmente porque eu gostava de uma ou duas músicas, e que hoje já não fazem tanto sentido assim para mim. O segundo traz CDs de várias bandas diferentes, são mais novos, mas no futuro, vão ser tão importantes quanto os que residem ali, no terceiro. E o primeiro porta CDs, o de aparência mais feia, é o que traz os CDs das 3 bandas favoritas: Nirvana, Strokes e Silverchair. Cada uma diferente da outra, mas cada uma com um significado especial.

Kurt Cobain, mesmo quando sua banda se tornou extremamente comercial, escrevia músicas que se encaixam, e se encaixarão sempre na vida de alguém no mundo. Enquanto houver vida, fracassados e desapontados sempre habitarão neste planeta.

Strokes falam de coisas banais, pessoas banais, situações banais, mas conseguem fazer músicas muito boas enquanto divagam sobre o dia-a-dia.

E se há uma forma de dizer o que é música, ao meu ver, é ao ouvir Silverchair. Graças aos sofrimentos, aos problemas e as doenças de Daniel Johns, o mundo presenciou vários minutos de raiva, angústia, depressão e sofrimento em seus discos. Mesmo agora, que ele está melhor, mais saudável, ele continua a dizer várias verdades sobre o mundo, dando bofetadas morais em várias pessoas vazias e interesseiras espalhadas por aí.

Desse porta CDs, retiro Freak Show, álbum de 1997 do Silverchair, coloco-o no aparelho de som, e cantarolando Slave, jogo meu corpo dolorido no sofá, talvez apenas para descansar, ou talvez eu durma um pouco. Há tantas noites tenho ficado acordado, perdendo meu tempo para remoer meu passado, que talvez eu consiga tirar uma soneca deitado em meu sofá duro e velho.

Memórias, fragmentos de vida que já passou, deveriam realmente ficar para trás. Para que nosso cérebro guarda momentos que nos machucam tanto? Se ele realmente sabe que isto dói até de ser mantido, para que ele deixa que as imagens desse momento voltem a figurar em sonhos e pensamentos? Memórias deveriam ser opcionais, deveria nos ser dada a opção de escolher o que vai ser guardado para sempre, e obviamente, seriam guardados somente os momentos bons, aqueles que nos dão prazer de serem lembrados, que ainda nos fazem rir, remontar perfeitamente os momentos, e não aqueles momentos que nos deixam marcas eternas de dor e decepção.

Por que alguém precisa lembrar que um dia foi deixado de lado por ser pobre, ou feio, ou impopular? Qual é a importância daquele dia em que você foi humilhado perante todos os seus colegas de classe por ser o pior aluno em tudo? Como alguém pode viver com a lembrança de que nunca teve reais amigos, mas apenas pessoas que cruzaram o seu caminho porque precisavam de alguma coisas que podia fornecer?

Não, isto realmente não é necessário ser mantido por ninguém, qualquer pessoa que possui memórias assim as odeia muito. Principalmente quando essas memórias e outros vários momentos começam a perturbar-lhe o sono.

Algumas filosofias costumam dizer que a vida é um presente. E algumas pessoas dizem que é falta de educação devolver presentes. Porém, a vida é um presente que eu realmente gostaria de poder devolver. Pois, se a vida é um presente, é um presente de grego, uma daquelas coisas que temos em casa e, quando queremos nos livrar dela, damos de presente. Ela é dada, e ninguém nunca nos diz o que fazer com ela, apenas dizem que nós devemos viver corretamente. Mas ninguém nunca sabe o que é realmente correto, então vivemos todos na dúvida e no erro. Ela nos é dada, sem motivo aparente, e sem perguntar se realmente a queremos. Se soubéssemos antecipadamente para onde estávamos sendo mandados, e se tivéssemos a escolha de receber este “presente” ou não, certamente decidiríamos por sermos mal educados e não o aceitaríamos.

E sim, quando o CD já está tocando Cemetery, eu consigo pegar no sono. O sofá realmente me trouxe paz, me deixou relaxar em sua superfície dura e não me trouxe nenhum sonho perturbador. Até cheguei a sentir um momento de felicidade sem motivos aparentes.

Não suporto pessoas que finjam estar felizes. Felicidade deve ser algo espontâneo, algo que nasça em nós por alguma coisa muito boa ou engraçada acabou de acontecer. É simplesmente ridículo ver alguém que sempre sorri, pois todos sabemos que ali está um ator, e da pior espécie. Não é possível ser feliz o tempo inteiro. Felicidade é como um lapso de memória, é no momento em que seu cérebro relaxa que você sorri, pois nesse momento lhe é permitido esquecer que verdadeiramente você é triste, que todos o somos.

Memórias do Indizível II - Que Belo Estranho Dia Pra Se Ter Alegria

Acordara cedo num dia que não precisava.
Era fim de semana, porém alguém fizera questão de colocar o som alto e estacionar em frente ao seu prédio, e deixar o som ligado. E também, o carro. Com certeza um carro velho, com aquele barulho chato de motor que está querendo, incessantemente, afogar.
Quando isso acontecia, ele costumava se irritar. Porém, hoje não. Abriu a cortina e viu que o tempo estava para chuva, se formando uma tempestade, talvez.
Da mesma forma, ele decidiu sair, caminhar. Comprar pão fresco, talvez àquela hora da manhã, pouco mais de 8 horas, conseguisse pão novo.
Se lavara, e fora trocar de roupa. Conseguiu apenas uma bermuda velha e uma camiseta amassada. Após ter ficado desempregado, ele não pagara mais empregada, e as vezes se esquecia ou tinha preguiça de arrumar suas coisas. Tinha apenas um par de roupas arrumadas para sair procurar emprego.
Saíra de casa, porém o portão do prédio emperrou. Após 5 minutos forçando, ele conseguiu. Conseguiu também um pequeno corte no polegar, que ardia um pouco, mas ele não se irritara.
Chegando a padaria, ele viu o padeiro fechando as portas.
- O que houve?
- Houve, que fomos assaltados a esta hora da manhã. Nada de pães, nada de trabalho para mim hoje.
Além de estar desempregado, de ter sido acordado cedo, por um carro velho e seu som chiado, de ter cortado o dedo, de o tempo estar para chuva, ele ficaria sem pão.
Apesar disso, ele sorria.
Estava bem, e se sentia bem consigo mesmo.
Enquanto ria consigo mesmo, passou perto de um bar que tocava Roberta Sá na rádio, e assim ela cantava:
- que belo estranho dia pra se ter alegria, e eu respondo e pergunto: é só o tempo pra gente ficar junto, é só o tempo de eu enlouquecer por você...
E sim, talvez ele estivesse enlouquecendo. Mas não era por ninguém, era por ele mesmo. Pela própria vida.
Apesar de todas as coisas ruins que vinham acontecendo, ele não sabia porque, ele tinha vontade de sorrir. Acordou naquele dia, sentindo, sabendo, que o que é ruim não dura para sempre.
Ou ele morre, ou ele some, ou a vida dá uma reviravolta. Três formas de tudo melhorar, e ele sorria, esperando para ver qual das três a vida iria lhe proporcionar.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Memórias do Indizível I - Silêncio Revelador

Andei olhando um antigo blog que eu dividia com uma amiga, O Indizível Mencionado, e encontrei algumas coisas minhas que a muito tempo não via. Decidi repostá-los aqui, para não correr o risco de perdê-los nem nada. Que assim seja.

Silêncio Revelador

-
Você? - diz ela, em um tom irônico, beirando ao riso - Você não serve para nada. Você não é nada mais do que um lixo para mim. Um Inútil !

Era comum ele ouvir isso. Ele já se acostumou com toda a hostilidade que o mundo lhe ofertava. Era fato que também, ele nunca tentara se defender. Sempre ouviu calado a todos os insultos que viam a ele. Sabe como é, uma daquelas pessoas que não gostam de criar conflitos.
Cresceu ouvindo críticas destrutivas, de como ele era feio, preguiçoso, inútil, desnecessário. Ouvia de todos que ele estava no mundo apenas para ocupar espaço.
Muitas pessoas dizem que quando se tem dor acumulada, um dia a pessoa explode. Ele não. Ele nunca acumulou força nem vontade para explodir. Ele queria paz, nem que para isso ele tivesse que se manter calado.

Sua mãe o viu novamente sentado em frente ao computador. Fazendo o que, ela nunca realmente se interessou. Ninguém nunca realmente se interessava no que ele fazia. Se era útil, bom, interessante. Ele era incapaz de fazer algo prestável, era o que todos pensavam.
Ela o mandou levantar e se fazer util pelo menos uma vez na vida, lhe virou um tapa no rosto, que o derrubou no sofá.

- Você só está aqui para fazer nada? Então que vá fazer nada em outro lugar, seu verme.

Nesse dia, a pele fina que ele segurava com os dedos para não abrir, finalmente se transformou em ferida. Ele não explodiu, ele não se exaltou. Ele simplesmente, levantou-se da onde havia caído, e deixou uma lágrima cair. E com essa lágrima, a mãe notou, após anos, que até o mais (supostamente) ignóbil dos seus filhos, possuía algum sentimento. E, pela primeira vez em anos, o abraçou.

- Demorou para que você demonstrasse para mim que estava vivo de verdade, meu filho.

É assim. Às vezes a vida leva tempos para nos mostrar, que o que na verdade está nos machucando, acontece apenas para nos ensinar, para nos mostrar um caminho e mudar.
Muitas vezes é dificil aprender, porque temos medo de agir conforme a vida pede, ou porque os obstáculos são grandes.
Mas, certas vezes, palavras mudariam tudo. Ou, uma simples ação. Um gesto, uma lágrima. Uma forma de demonstrar o que se quer dizer, mas em silêncio. O indizível sendo mencionado.