quinta-feira, 20 de junho de 2013

Língua Morta

Eu só queria te dizer como dói. Ontem, depois desses meses todos, eu decidi abrir a gaveta. Aquela gaveta, que eu te dei pra guardar as tuas coisas, pra você chamar de tua, quando eu te chamei pra mim. Pra me chamar de tua. A última vez que eu a abri, foi quando eu joguei todas as tuas coisas de qualquer jeito dentro de uma sacola de lixo e atirei pela janela. Tudo que era seu foi expulso. Só ficou a caixa na gaveta. A camisa que era tua, e que eu usava pra dormir, que eu nunca te vi vestido. A tua marca no colchão.
Abri a gaveta, e lá dentro, sozinha, ainda encontrava-se a caixa. Olhei-a, e foi como se visse tua mão estendendo-se e entregando-a para mim. Foi como se sentisse tua outra mão em meu ombro. Como se teus olhos estivessem a me encarar. Dentro da caixa, apenas o vazio. Dentro da caixa, você me entregara presentes, na época. Me entregara os anéis. A camisa. O CD. A carta. Você. Eu me lembro da minha surpresa a ver tudo aquilo, e do teu sorriso e das lágrimas nos cantos dos teus olhos e do teu riso frouxo e da tua voz de entoar melodias me dizendo que eras meu. Que era você quem estaria aqui. Dentro da caixa. Do lado do colchão. Da metade da vida.
Dentro da caixa, agora, permanecem apenas as lembranças. O anel, que ficara comigo, atirei-o pela janela. Talvez tenha sido arrastado pela chuva, pelo tempo. Talvez encontrado por alguém. Ou talvez esteja, simplesmente, escondido no jardim. Já pensei isso diversas vezes. Nunca tive coragem de procurá-lo. A camisa, que me destes, rasguei, queimei. Só mantive a tua. A que me destes, eu não quero. Prefiro o sabor do furto de algo teu, do que algo que me destes. Me furtastes o tempo. Eu me sinto no direito.
O CD, quebrei. Em mil pedaços. Destruí o encarte. Não apenas para não lembrar de ti pelo presente. Mas pelas músicas que nele constam. Cada uma delas me faziam lembrar de ti. Como se fosse tua doce voz que as cantasse no meu ouvido, me torturando. Como se cada palavra das letras fosse teu nome, entoado diversas vezes, me fazendo decorar cada linha do teu corpo. Os teus refrões.
E a carta, eu também queimei. No papel, que tinha teu perfume, residia a tua letra quase que desenhada, me descrevendo com riqueza detalhes, com excessos de elogios, com mentiras que os olhos não filtram no início de uma paixão. Me comovia, me tocava, me perfurava com tua doçura, e me fazia sentir a mais protegida das criaturas, na poesia do teu amor. Me fazia sentir nua, com o toque das tuas juras, e me entregava completamente aos anseios da eternidade. Que não durou o tempo prometido. Que se arrastou, se atropelou, tropeçou, e que me deixou tão frágil, tão inábil. Tão sem você.
Abri a caixa, e dentro dela apenas as lembranças do que havia ali. Me arrependo hoje de ter queimado a carta. Gostaria de tê-la guardado. Mesmo que tudo fosse construído em inverdades e intenções. Irreais. Eu queria tê-la. Eu gostaria de lê-la novamente. De lê-lo novamente. Todas as suas entrelinhas, seus versos, suas estrofes. Queria que tivéssemos esquecido os travessões, e como Saramago, incluído nossos diálogos em nossos parágrafos, em nossos atos, sem interrupções, sem regras antigas, sem gramática obtusa. Eu queria que tivéssemos sido simples, como uma conversa chula, cheia de gírias, mas que fosse compreensível. Pra mim, e pra você.Que criássemos um dialeto, que eu te acariciasse com canções de Elis Regina, e você me despisse e abusasse de mim com a destreza de Nelson Rodrigues. Queria ter emoldurado tuas palavras em marfim bem lindo, e pendurado nas paredes. Queria ter te guardado naquela caixa. No teu lado do colchão. E te devolver a tua camisa.

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