segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A Solista

A luz parece um tanto estranha quando vem de fora. Quando vem de fora depois de muito tempo que ficou proibida de entrar. Parece não encontrar o seu lugar quando bate nas paredes mofadas, quando encontra a pintura descascada, os móveis velhos, os panos sujos, a pele extremamente branca e ressecada que cobre os ossos e a pouca carne que ainda me sobram.

sábado, 16 de agosto de 2014

Reflexos Solares em Anúbis

Eu te vi cair da ponte, e só fiquei olhando. Poderia ter até feito algo, quando te vi sentada no parapeito, olhando fixamente para o rio lá embaixo. Pelo seu olhar, e pela maneira como seu tronco se impulsionava lentamente e constantemente para a frente, eu soube, desde o princípio, qual era a sua intenção. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Em silêncio, enfim

Pisei com receio nas pedras 
Ouvi as tuas verdades incertas 
Desci a rampa, com medo 
E desenhei teus olhos vagos 
Numa folha de papel qualquer 
Tentei colocar ali alguma cor 

domingo, 6 de julho de 2014

Me deixa ser o rio.

Quando entrei na água corrente, pretendia apenas molhar os pés, ainda assim, com certo desgosto. Nunca imaginei, porém, que já no primeiro passo, eu mergulharia inteiramente na correnteza dos teus detalhes. Jamais imaginei, realmente, que me veria entregue com apenas um olhar de canto e um sorriso tímido, até de leve espanto ou desgosto inicial com minha presença. E agora, me encontro, então, afogado em tuas verdades e em tuas dúvidas.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Um Dia Como Outro Qualquer

Seria um dia como outro qualquer, querida. Apenas virar a página do calendário e seguir em frente, não é? Apenas olhar os ponteiros do relógio correndo, não é, querida? Porque estávamos tão acostumados com a rotina dos dias parados, que as nossas retinas já nem mais precisavam receber a luz para saber a imagem que estaria sendo decodificada e derramada em nossos olhos. Nós estávamos tão acostumados com o frio das paredes protegidas do sol pelas cortinas grossas que nos incomodava muito quando o sol invadia nossos cômodos e ousava trazer um pouco de sua luz quente para mudar a temperatura ambiente que criamos com tanto esmero aqui, em nosso lar.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Velho Manual de Nós Dois

Pode ir, vai. E não precisa voltar tão cedo, vai. Eu resolvi limpar a casa, varrer as folhas das calçadas, tirar os lençóis da cama, colocar as roupas pra lavar. Também vou limpar as louças, guardar no lugar, deixar a pia livre, e arrumar a torneira, que por mais forte que fechemos, não para de pingar, de forma alguma.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Recolhendo Restos


- Eu disse que voltaria
- E todas as cartas e bilhetes e recados
- Só não disse que iria ficar
- Todos os cartazes panfletos anúncios
- Eu nunca prometi que o abraço que te daria no fim seria igual ao
- Nosso passado que eu sempre quis que voltasse
- Primeiro

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Se eu não voltar hoje

Se eu não voltar hoje, querida, não coloque meu rosto na caixa do leite. A minha intolerância a lactose poderia fazer com que meu rosto ficasse cheio de manchas vermelhas, e eu me tornaria irreconhecível. Além do mais, eu não quero que ninguém fique encarando o meu rosto enquanto corta o seu pão, e me incline bruscamente enquanto derrama o líquido branco dentro de uma xícara de café amargo. Eu prefiro quando eles tem açúcar. Eu sempre preferi quando tudo aqui era doce.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Máscara Branca


Eu persegui os olhos dela, com cautela, enquanto ela atravessa o salão. Eu, como sempre, estava sentado, de maneira desleixada, em uma das cadeiras encostadas na parede. Não, eu não sou um daqueles jovens estereotipados de filmes americanos, que estudam demais, não têm amigos, e que vão às festas apenas para depois chegar em casa e se lastimar de sua vida medíocre. Eu apenas aprecio observar, à distância, os hábitos dos meus colegas depois de certo nível de álcool e qualquer outra droga. Também não vou à festa e fico sem consumir nada. Muito pelo contrário. Por várias vezes, eu sou o que mais bebo, o que mais fumo, o que mais cheiro. Mas, ainda assim, não mudo minha atitude. Fico sentado, em algum lugar, observando as pessoas que estão a dançar, cambalear, tropeçar, cantar, vomitar, beijar, se entrelaçar nos sofás, fumar maconha, passar pacotes de cocaína de maneira disfarçada, desmaiar, gritar. Vezenquando alguém vem ao meu lado, e conversa algo comigo. Normalmente, as pessoas que nunca frequentaram as nossas festas. Que não conhecem os meus hábitos. Meus amigos de longa data não mais questionam. De início me chamavam de tedioso, chato. Até de inconveniente. Até o dia em que comecei a contá-los sobre o que observava, e a maneira como observava, suas atitudes no decorrer dos eventos. Achavam interessantes minhas colocações, o fato de eu não pontuar vestes, cabelos, maquiagens, e sim, fazer uma análise extremamente psicológica dos seus atos. Admiravam também o fato de que eu não chegava até eles para contar sobre as atitudes dos outros. Para fazer fofoca, criar intrigas, causar discórdias e discussões. Eu chegava até as pessoas, para falar delas mesmas. Para eu contar como eu as observei, apenas para a pessoa. Sem falar para mais ninguém. Alguns diziam que eu os via como eles realmente eram, e ficavam lisonjeados, admirados, surpresos. E outros, principalmente aqueles que eu conseguia visualizar profundamente, todos aqueles caminhos extremamente obscuros, que procuravam esconder de todas as maneiras, sentiam-se invadidos, perseguidos, ofendidos, ameaçados. Alguns desses se afastaram de mim. Eu, sinceramente, não sinto a menor falta.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Jornada


Eram longos os dias. Eram longos os dias atrás daquelas paredes cinza, já levemente descascadas, com teias de aranha nos cantos do teto, aqui e ali, e com manchas de mofo no teto, resultado das diversas goteiras acumuladas com o passar do tempo, e cujas telhas nunca foram trocadas para sanar o problema. Quando chovia, parecia haver mais água dentro do cômodo do que fora, e a correria geral para tirar os papéis e as máquinas e os fios do alcance da água escorrendo, incessante.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Sentença

Começamos bem o nosso dia. Levantei antes de você, como de costume, e dei-lhe um beijo na testa. Você, ainda de olhos fechados, sorriu sem abrir os lábios, e virou-se para o outro lado, puxando o edredom com as pernas, e colocando-o entre suas coxas, de maneira que podia ver sua perna direita, branca, e a calcinha que usara para dormir. Fui ao banheiro, tomei um banho para despertar. Escovei os dentes, e fiz a barba. Contra a sua vontade. Você sempre me preferiu de barba. Mas, o trabalho me obrigava a tirá-la. Sequei os cabelos com secador, arrumei-os, e voltei para o quarto enrolado na toalha. Você estava sentada na beira da cama, espreguiçando-se. Cheguei até você, dei-lhe um beijo. Você, então, seguiu para o banheiro, enquanto eu me vestia.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

De Dois mil e tantos.

Meu amor,

Feliz ano novo.

Eu sei que há muitos réveillons não lês minha letra, e talvez nem a reconheça mais. Resolvi não assinar esta carta, não dizer quem sou. Enviei-a sem remetente. Apenas chamei-a, meu amor. Sendo assim, talvez lembre de mim. Ou escolha outra amor, crie a fantasia de quem lhe enviou. Talvez um novo amor. Não me importo que não seja eu o remetente. Mas, sim, que sejas tu o destinatário. Talvez não te recordes da única virada de ano que passamos juntos. Afinal, éramos tão jovens, a orla estava tão lotada de pessoas comemorando, que se abraçavam beijavam choravam bebiam pulavam sete ondas comiam uvas jogavam rosas à Iemanjá fumavam maconha cantavam Caetano Beatles Mutantes. "Ninguém aqui escuta Secos & Molhados". Você reclamou isso pra mim, lembra, meu amor? Que aquela era sua primeira virada de ano na praia, e que haviam várias caixas de sons com diversas músicas diferentes, mas ninguém ali, ouvia Secos & Molhados.