segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A Solista

A luz parece um tanto estranha quando vem de fora. Quando vem de fora depois de muito tempo que ficou proibida de entrar. Parece não encontrar o seu lugar quando bate nas paredes mofadas, quando encontra a pintura descascada, os móveis velhos, os panos sujos, a pele extremamente branca e ressecada que cobre os ossos e a pouca carne que ainda me sobram.
Havia muitos anos que eu não abria as cortinas. A luz de fora não entrava aqui há anos, e eu preferi assim por todo esse tempo. A vaidade se esvaiu no mesmo dia que seus olhos se fecharam. Quando reuni suas últimas peças de roupa para vesti-lo uma última vez, e uma das gravatas caiu no chão quando tirei a camisa do cabide, e não senti vontade de recolhê-la imediamente e guardá-la novamente como sempre fiz, asseada que era, eu soube. Ali, eu soube que o que havia em mim se moldara de acordo com o que você quis.
Naquele momento, me correu um misto de angústia raiva liberdade medo ânsia coragem vontade agonia saudade desprezo. Desprezo. Desprezo por mim, por você, por todos os dias perdidos, e por ter perdido a mim. Perdida. Quando deixei a gravata deitar no chão com a força do seu próprio desejo, entreguei as suas roupas à sua irmã, e pedi que as levasse. E que levasse com ela todas as outras pessoas que invadiam os cômodos de nossa casa. Ela me olhou, espantada, e pediu que eu repetisse o desejo. Me exaltei, e gritei à todo pulmão, para que ela tirasse todos os vermes bípedes que estavam aninhados em meus cômodos. À minha ordem, saiu desesperada e começou a chamar todos. Fiquei da janela, contando um por um os que atravessam o portão. Quando o último saiu, tranquei a porta. Fechei as cortinas, fechei as janelas, fechei as portas. Fechei.
Me guiando com luzes de velas, me alimentei da penumbra, me hidratei de poeira, me sustentei com remorsos. Como a luz não era muito estável, caí algumas vezes, por tropeçar em peças de roupa, louças, sapatos, ratos, insetos, pedaços de mim, pedaços de você. Todos espalhados pelo chão da casa crepuscular. Me habituando à solidão, me tornei companhia de mim mesmo. Sem espelho, me via refletida no tremular da fumaça dos candelabros, e me entretia me fazendo dançar por entre os móveis da sala de estar. Sentada no sofá, cantarolava para me assistir dançando, rodopiando, subindo na poltrona ao meu lado e pulando suavemente no chão.
Não sei mais contar o tempo. Não vejo dia nem noite. Durmo quando sinto sono, acordo quando me sinto descansada. Não sei há quantos anos estou aqui, só. Há quantos anos você se foi. Há quantos anos eu parti. Há quantos anos estou partida. Isso não me parecia importante, até o dia que eu também fui. Até o dia em que eu fui abandonada novamente, por mim mesma.
Sentei no sofá, como todos os dias, e comecei a cantarolar. Baixinho, como sempre. Sempre era suficiente cantarolar baixinho para que eu aparecesse para dançar para mim mesma, para que eu pudesse apreciar os passos. Mas desta vez, não. Comecei então a aumentar o volume de minha música, e olhando para os lados para ver por qual porta eu adentraria a sala vazia, mas eu não vinha. Coloquei então algumas palavras, alguns "lalari, lalara", e ainda aumentando o volume. Levantei-me do sofá, e fui até a porta maior. Então, ouvi alguns passos indo em direção a porta. Não quis acreditar que eu estava indo embora. Amedrontada com o fato de poder estar perdendo a mim mesmo, como num reflexo, para ver se eu estava correndo em direção ao portão, corri até a janela e escancarei as cortinas.
Em um primeiro momento, a luz do sol invadiu meus olhos e eu acreditei que nunca mais enxergaria em minha vida. Por mais que tivesse luz artificial o tempo todo dentro da casa, a força e a intensidade da luz solar são simplesmente incomparáveis. Pisquei algumas vezes, e consegui então olhar para fora. Eu não estava lá também. Continuei, porém, olhando para o portão, e me recordando do dia em que mandei todos embora.
Não sei por quanto tempo fiquei ali, admirando a visão, quando senti alguém encostar em meu ombro. Virando o rosto, olhei para a mão, e reconheci: Era minha mão. Eu ainda estava ali, não tinha fugido. Perguntei para mim o que houve, onde eu tinha ido. Eu apenas abanei a cabeça, e pedi para que olhasse para a sala atrás de mim.

Talvez eu devesse ter feito uma faxina antes. Antes de deixar a luz do sol voltar. Me perdoe pela bagunça.

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