terça-feira, 23 de abril de 2019

Ventos furiosos a mais de 120km/h

Tudo que eu não esperava ao final daquele dia era um furacão.
Enquanto vasculhava o porão a procura de coisas que deveriam ser encaixotadas e do que eu poderia simplesmente jogar no lixo, ouvindo Morrissey bem baixinho para quebrar o silêncio, começou de longe o barulho do vento. Apenas uma chuva de final de verão, eu pensei, apesar de já ser outono.

Abrindo as velhas caixas, as coleções de livros que um dia pertenceram a familiares que nem estão mais por aqui e que a única coisa que puderam deixar de herança foram sequências de volumes em capa grossa, os discos de vinil com encartes lindos e que nunca foram escutados porque nunca foi prioridade comprar uma vitrola, as roupas de inverno que foram ali armazenadas para colocar no sol mais tarde mas que nunca mais viram a luz do dia, tudo isso enquanto cantarolava all the rainbows in the sky start to even say goodbye you won't be seeing rainbows anymore, e lá no fundo, o barulho do vento intensificava.
Qual não foi a minha surpresa quando tive a sensação de que o vento estava dentro da nossa casa. Ali, no porão, me senti protegido, mas temi por você no andar de cima. Me perguntei o porquê de não ter vindo até o porão se proteger, quando viu essa ventania forte se aproximando pela janela. Me questionei se você preferia o tufão a minha presença, e a sua ausência se fez resposta. Maior susto tomei quando as lâmpadas estouraram e fiquei num completo breu. A minha música parou de tocar, eu não mais cantarolei. Em silêncio e escuridão, apenas ouvia parede por parede e móvel por móvel de nossa casa sendo triturado e mastigado pelo vento furioso que estava sobre o chão acima de mim. E me perguntava se você havia corrido, se havia fugido, apesar de não ter ouvido o barulho do carro e o estacionamento ser exatamente em cima da entrada do nosso porão.
Não sei se minutos ou horas depois, tendo visto que o pânico e o inesperado tiraram totalmente a noção de tempo que eu poderia ter, o vento parou. O furacão saiu de nosso terreno. Respirei profundamente algumas vezes antes de levantar a tampa do porão e ter coragem de verificar o estrago que havia sido causado.
Os pilares de nossa casa se mantiveram em pé. Todo o resto havia se desfeito. Sem me preocupar pelos bens materiais, a primeira coisa que fui procurar foi você. Não haviam sinais, apesar do carro estar ali, embaixo de alguns escombros. De alguma forma, você havia conseguido escapar em meio à todo aquele caos. Respirei aliviado, apesar de não saber qual tenha sido o seu destino, e algum tempo mais tarde saberei que nunca mais terei ouvido falar em você. 
Em meio aos escombros, sabia que nada mais seria recuperado, e tudo que se salvou eram as coisas do porão. Aquelas que estavam lá esquecidas, inutilizadas, e prontas para serem jogadas fora. Querendo apenas sair daquele lugar, removi as tábuas e telhas que recaíram sobre nosso carro, para verificar se seria possível me afastar daquelas ruínas e ir a algum lugar para poder repensar tudo que havia acontecido. Reconstruir a casa em outro lugar, recomeçar os dias do zero. Como sempre, as chaves estavam na ignição. Porém, o que me chamou a atenção foi o bilhete que estava sobre o banco, que, com letras feias de quem escreveu com muita pressa, dizia "it's hard to see I loved you better when I didn't have you".
It's hard to see I loved you better when I didn't have you. 
Parado sobre os escombros, ao lado do carro com para-brisas destruído e lataria amassada, eu digeri aquela frase, e tudo que aconteceu no dia de hoje. Eu não esperava este bilhete. Eu não esperava que você fosse desaparecer de mim para sempre. E, principalmente, tudo que eu não esperava, definitivamente, era um furacão.

Um comentário:

  1. Texto sensacional! Às vezes, é preciso sair do porão antes, durante ou após o furacão.

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