sexta-feira, 24 de abril de 2020

O riso perdido

Da minha infância, tenho poucas lembranças claras. Fico bastante surpreso quando ouço pessoas dizendo que lembram de situações de quando tinham 3, 4 anos. Pra mim, todo esse período da minha vida é um imenso borrão. Um vazio que é preenchido por memórias de outras pessoas, que conviveram comigo nestes períodos e me relatam fatos. Construo minha história desta época com base nas verdades dos outros.

A partir dos meus seis anos, eu tenho algumas lembranças mais claras. Me lembro do meu primeiro dia no colégio novo. Desde que entrei na escola, havia estudado no mesmo lugar, porém, quando passei pro Jardim III (acho que nem usam mais esse nome hoje em dia), tive que estudar em outro lugar. Por ser uma criança extremamente tímida, eu estava com muito medo. Qual não foi o meu alívio quando, ao entrar na nova sala, encontro com uma colega da antiga escola que estudaria junto comigo. Uma das poucas pessoas que eu interagia na outra classe estava ali também, e este sentimento é muita lembrança muito forte pra mim. O alívio de não estar só.
Minhas lembranças desta época são fortemente baseadas em sentimentos. Houve esse alívio. Havia muito medo. Doses bastante elevadas de solidão também. Mas, uma das minhas memórias mais fortes é do dia que eu esqueci como sorrir.
Eu moro na mesma casa desde que nasci. Um condomínio de apartamentos, dividido em 12 blocos de 8 moradias cada, com bastante espaço verde e áreas comuns. No mesmo bloco que o meu, haviam dois garotos, gêmeos, com quem eu passei a maioria da minha infância. Nós tínhamos exatos 1 mês e 7 dias de diferença, então, basicamente, nascemos juntos.
Vivíamos uns na casa dos outros, e foi na casa deles que consigo rememorar claramente este dia. Os meninos eram muito apaixonados por Jurassic Park, e nós assistíamos esse filme muitas vezes. Diversas dessas vezes era apenas o VHS rodando, as imagens passando, e nós ficávamos brincando sentados no tapete, e a trilha sonora eram os sons simulados do furioso tiranossauro rex. Neste dia, estávamos deitados no sofá, novamente assistindo Jurassic Park.
Um dos meninos fez algo engraçado. Engraçado para uma criança. Fez alguma piada, soltou um peido, jogou algo no irmão. O humor mais simples e claro da infância, não me lembro exatamente o quê. Mas me recordo exatamente de vê-los rindo, e não conseguir rir. Como não conseguir rir? Eu tinha achado realmente engraçado, mas eu não sabia mais rir! Forcei um sorriso amarelo para participar do momento e não ser deixado de fora, mas em minha cabeça infantil este pensamento estava muito forte: eu esqueci como se sorri.
Durante os próximos dias, eu simulei diversas vezes. Ensaiava novas risadas, lia piadas, assistia os meus desenhos e tentava achar a graça, mas ela havia se perdido em algum momento da minha história. Lembro claramente que, durante algum tempo, o riso que eu emitia era apenas um simulacro de alegria para poder pertencer.
Com o passar do tempo, o riso foi tomando alguma normalidade. Mas, sempre com a dúvida se ele era sincero, ou se era apenas memória muscular de todas as vezes que forcei o riso para não ser o único a não participar do momento.
O riso de uma criança é o arquétipo mais comum da infância. A inocência, a diversão, o som gostoso da risada solta e sem filtros. Olhando em retrospecto, vejo que eu não pertenci a esse lugar. Não posso dizer que tive uma infância ruim. Longe disso. Me foram proporcionados diversos momentos incríveis, eu pude conhecer, ter, fazer coisas que eu tenho plena consciência que muitas crianças não tiveram. Reconheço e sou grato por todos os meus privilégios. Mas, me pergunto se não deixei de aproveitar e de recordar esses momentos por essa alegria que eu perdi. Por esses medos, por essa solidão, por muito da agressividade psicológica que vivi. Porque, em algum momento, eu esqueci como sorrir.
E olho agora para esse momento, e relato todos esses sentimentos, para que eu possa ter plena certeza de que, quando eu sorrio hoje, sejam sempre sorrisos novos. E não apenas a imitação de um movimento que eu criei para não transparecer que, na verdade, eu ainda não reaprendi.

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