segunda-feira, 8 de abril de 2013

Uma Xícara para Dois

Usava luvas. Escondia as mãos cansadas sob a pele de algum animal. Desconhecia o couro. Desconhecia as mãos. As vestes, assim como as luvas, demonstravam que o corpo pálido esperava um frio que há tempos não se via pela região. O casaco comprido, também do couro desconhecido, deixava à mostra apenas as mãos enluvadas, a ponta das botas batidas e a cabeça. Seus olhos estavam distantes. Eu sentia um frio jamais visto emanando da face abatida.
Chegara atrasada, como de costume. Nunca fora muito de pontualidade, principalmente nos últimos tempos. Ela sempre dizia, porém, que não eram atrasos. Era apenas sua noção de tempo que era diferente da dos demais. Em dias passados, diria isso seguido de uma longa e alta risada. Hoje, os lábios cerram em um silêncio arrebatador.

Cumprimentara-me com um aceno de cabeça e sentara-se à minha frente. Há tempos evitava-me o toque. Quando depositou as mãos enluvadas sobre a mesa, pensei, por poucos segundos, em tocá-la. Hesitei. Desisti. Não sabia qual reação isso causaria. Não sabia mais lidar com a mulher à minha frente.
Tentava não demonstrar a euforia na qual me encontrava. Há meses não a via. A distância de tempo que nos víamos aumentava a cada encontro. A distância entre nós aumentava a cada respiração.
Mas, ainda assim, amava vê-la. Ansiava por nossos encontros. Todos os dias, escrevia o que de importante acontecia, para ler novamente quando ela ligasse, e marcasse o encontro, quando então, contaria, animado, uma síntese dos dias que se passaram desde que ela partira.
Pedi, então, um chá, antes de iniciarmos a conversa. Ela, como sempre, não pedira nada. Nunca mais a vi alimentar-se desde que saíra de nossa casa. Não mais a vi viva desde que perdi o seu caminho.
Enquanto meu chá não chegava, permanecemos em silêncio. Ela encarava as luvas, enquanto eu tinha os olhos fixos em seu cucuruto, e sorria tímido. Não tinha coragem de sorrir como desejava, pois temia a expressão velada que poderia surgir nos olhos semicerrados e na testa levemente franzida. Mas, ainda assim, me alegrava, distante.
Assim que chegara o chá, beberiquei-o, e então comecei a falar. Neste momento, ela erguera o rosto. Seus olhos não chegavam a encarar os meus, mas podia ver seu rosto enquanto falava.
Reinou o monólogo. Eu contei-a sobre a vida, sobre o trabalho. Sobre o nosso filho. Contei que nosso gato morreu, atropelado, e como nosso menino chorou. Que minha mãe estava melhor da gastrite, que não se tornara nada sério, ainda bem. Que recebi um aumento considerável, e minha relação com os colegas de trabalho melhorara muito. Contei-a que pintei a casa, mudei alguns móveis de lugar. Joguei a estante velha fora. Mantive os retratos. Contei que o menino parara de perguntar dela. Mas, às vezes, a chamava durante o sono.
Sobre ela, nada sei. Nunca mais insisti. Nunca mais perguntei. Nos primeiros encontros, eu questionava. Cheguei a me exaltar por várias vezes. Gritava, queria obrigá-la a falar. Joguei água, comida, chá, sobre ela. Ela nada dizia. Sua vida, para mim, tornara-se um mistério. Nossa vida, neste ponto, já não mais era.
Após uma hora, contando-lhe sobre os dias, a vida, a casa, o trabalho, o filho, ambos respiramos fundo, e eu disse, "Então é isso". Disse a ela que esperava que estivesse bem, que sentia sua falta, e que esperaria ela ligar. Nunca mais pedi para ela ficar. Aprendi que não adiantaria. Seus caminhos, desconhecidos, trilhavam atalhos que não cruzavam com nossa casa.
Antes de levantar-se, desta vez, ela surpreendeu-me. Olhou-me nos olhos, e esboçou um sorriso. Na verdade, seus lábios abriram-se leve e tortamente, e consegui ver um pouco de seus dentes. Mais parecia uma careta que um sorriso, mas sei que pretendera sorrir. Talvez tenha perdido o costume. Respondi com um sorriso. Um de verdade. E repeti à ela: "Esperarei você ligar". Ela levantou-se e saiu. Também nunca mais tentei segui-la. Por várias vezes, corri atrás dela. Ela sempre desaparecia ao virar a esquina. Aprendi a deixa-la ir.
Cheguei em casa já era tarde. Meu filho dormia. Ele nunca soube que, nos últimos 8 anos, via sua mãe esporadicamente. Nunca achei pertinente contar. Dei-lhe um beijo no rosto, e ele virou seu corpo para a esquerda, dando-me as costas. Fui para meu quarto, e sem me trocar, atirei-me na cama vazia. Sorri. Lembrando das luvas, do rosto baixo, dos olhos frios. Do sorriso. Principalmente do sorriso torto. Sorri ao lembrar. Talvez, da próxima vez, ela decida ficar.

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