quarta-feira, 6 de maio de 2020

Carta aberta para quem eu não quis ser

Se eu paro agora, 14 anos depois, e olho pra você, Gabriel, é porque eu não faço isso há muito tempo.
Me entendo um homem gay desde os meus 14 anos. Por muitas vezes, sou perguntado: você sofreu pela sua sexualidade? Você tem traumas por ser gay? Teve situações muito fortes por causa da homofobia?
Não posso dizer que não sofri. Me recordo que, aos 12, eu sabia que havia algo de diferente em mim, e que eu queria mudar isso. Corrigir isso. Mas, com algum tempo, algum entendimento, e algumas pessoas que fizeram toda a diferença e influência positiva na minha vida, esta questão foi superada.
Também não posso dizer que a sociedade não tenha me reprimido por isso. Sei e reconheço que, por causa de minha sexualidade, fui obrigado diversas vezes a provar o meu valor de formas mais difíceis que um homem heterossexual teria para ocupar os mesmos espaços. Contudo, essa não foi a minha maior questão, nunca.
Sempre quando sou perguntado sobre ter sofrido por causa de minha sexualidade, a minha resposta, em tom de brincadeira, sempre foi: “eu sempre gastei tanto tempo tendo complexo em ser gordo, que eu nunca tive tempo pra ter complexo por ser gay”. E essa é a maior verdade. 
Se eu paro agora, Gabriel, depois de tanto tempo, e olho pra você, foi porque durante muito tempo eu não quis revisitar todas as dores e sofrimentos e repressões que eu sofri durante essa época.
São poucas e raras as lembranças que eu tenho da infância, mas eu sei que eu fui uma criança gorda, um adolescente gordo, e eu sei todas as coisas que eu ouvi e vivi por causa disso.
Eu me permiti, durante muitos anos da minha vida, viver relações extremamente tóxicas, abusivas, possessivas e controladoras, porque, ao menos, eu tinha alguém do meu lado. Meus amigos não entendiam o porquê de eu me permitir viver essas relações, sendo tão claro e explícito que as viver me fazia tão mal. 
Eu me permiti, porque uma das lembranças mais claras que eu tenho da minha infância, é ouvir, dentro de casa, da pessoa que, teoricamente, deveria ter me dado o primeiro amor que eu deveria ter recebido de alguém, que eu jamais seria amado por alguém porque eu era gordo. Que uma pessoa gorda não tem como ser amada, que eu não teria pessoas perto de mim porque o gordo é feio, e ninguém gosta de estar perto de uma pessoa feia.
Portanto, qualquer namorado que eu tivesse, recebia automaticamente o direito de fazer o que quisesse comigo. Afinal de contas, se esse cara quis ficar comigo, ou eu seguro ou eu vou ficar sozinho pra sempre, por que quem vai querer esse garoto gordo?
Durante muitos anos, também, eu deixei de fazer e viver coisas por medo de errar. Por medo de fracassar. Por medo de ser julgado. Por medo de ser apontado. E tudo isso, porque eu também vivi, dentro de casa, uma pressão absurda para ser o melhor da escola. O melhor da sala. Eu não podia errar. Eu não podia fracassar. Eu já era uma criança tímida, sozinha, e gorda. Ao menos intelectualmente perfeito eu tinha que ser, porque senão, o que restaria para mim?
E no meio de tanta pressão, e tanto medo de estar sozinho e de fracassar, eu me tornei uma pessoa extremamente ansiosa. E a minha fuga, durante muito tempo, foi na comida. E aí, durante toda a minha adolescência, eu vivi esse ciclo de autodepreciação, de me odiar por ser gordo, porque assim eu aprendi, e de comer por estar ansioso, e aí voltar para o começo.
Com o passar dos anos, eu emagreci, muito, depois, engordei e cheguei ao ápice do meu peso, e, hoje, eu estou como eu estou.
Não posso dizer que, hoje, sou a pessoa mais feliz com o meu corpo. Em diversos dias, eu me sinto mal, eu não gosto de olhar pra mim, eu não me acho bonito. Em diversos dias, eu queria ser a pessoa mais magra do mundo, mas eu sei que a minha felicidade não está, nem nunca vai estar, nos números da balança e nas medidas do meu corpo.
Mas sei, Gabriel de 14, 15, 16 anos, que eu preciso olhar pra você, preciso reconhecer você como parte da minha história, para poder amar o Gabriel, que vai fazer 30 logo mais nesse ano, ainda mais. 
Nunca foi justo com você ouvir que você não seria amado. Que você não merecia ser amado por seu peso, ou por fracassar vez ou outra. Seu peso e seus fracassos nunca te definiram, e nunca vão te definir. Você mereceu ser amado. Você merece ser lembrado e celebrado com amor. Durante muitos, muitos anos, eu não te olhei. Eu não te celebrei.
Eu não te amei.
Se eu paro agora, 14 anos depois, e olho pra você, Gabriel, foi porque eu fui injusto e me envergonhei de você por tempo demais. E hoje, não importa o que pensem de você, eu te amo, e muito.

Com muito carinho, respeito, e amor,

Do Gabriel de 29, para o Gabriel de 16.

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